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Com
Carlos Drummond e João Cabral, a assimilação
literária do futebol deixou de ser simples retórica
(11/4/1999)
Literatura
e mistério da bola
Folha Imagem |
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O jogador Ademir da Guia
(primeiro, da esq. à dir., em pé) chamado de "o
divino", disputa partida pelo Palmeiras, 1972 |
BENTO PRADO JR.
Num
artigo publicado na Folha ("Latejando com o Futebol",
17/9/88) e reproduzido no livro "Seres, Coisas, Lugares"
(Companhia das Letras), Decio de Almeida Prado contrapõe
duas formas postas da, digamos assim, "assimilação
literária do utebol". De um lado, na retórica
barroca de Coelho
Neto, de outro, na secura futurista de Oswald de Andrade, ambos
empenhados na comemoração da glória do futebol
brasileiro.
Do lado de Coelho Neto, Decio dá exemplos da proliferação
barroca das metáforas: "Entrar com o pé direito,
fazer finca-pé, colocar-se ao pé de, saber onde por
o pé, usar pés de lã, não por o pé
em ramo verde, tirar o pé do barro... Parece que Coelho Neto
desejou competir em número de pés com os 22 jogadores
em campo, criando a ilusão de ser sua crônica um verdejante
e metafórico gramado". Do lado de Oswald de Andrade,
lembra o enxuto poema "A Europa Curvou-se ante o Brasil":
"7 a 2/ 3 a 1/ A injustiça de Cette/ 4 a 0/ 2 a 1/ 2
a 0/ 3 a 1/ E meia dúzia nos portugueses" (na sua excursão
européia, em 1925, o Paulistano fez carreira triunfal, mesmo
perante seleções nacionais, perdendo apenas para o
F.C. de Cette -que hoje se grafa Sète).
Muito haveria a dizer sobre esse belo artigo, com o qual aprendemos
muitas coisas. Como, por exemplo, que Coelho Neto, o "último
dos helenos", foi pai do Preguinho (nome pouco helênico),
meia-esquerda da seleção de 1930. Ou que Decio recebeu,
como presente de Jean Vilar, em 1957, o livro "La Tradition
Théâtrale", com uma dedicatória em que
assinava: "Un ancien petit joueur du Football Club de Sète".
O jogo de 1925, que fizera sofrer um Decio de sete anos, fora assistido
do "alambrado" por um eufórico Jean Vilar de 13
anos. Que há de mais curioso do que esse cruzamento entre
teatro e futebol, França e Brasil, esse encontro entre torcedores
do Paulistano e do F.C. de Sète, 32 anos depois da derrota
do time brasileiro?
Mas, na verdade, o texto de Decio de Almeida Prado serve-me aqui
apenas de pretexto para esboçar algo como um prolongamento
de suas observações: tentarei continuar a jogada com
a bola que ele levantou, contando apenas com meu precário
domínio dos "fundamentos" (como diz a crônica
esportiva) dessa arte.
O que me interessa é apresentar uma nova figura dessa oposição
literária ou, mais precisamente, entre duas formas de relação
entre literatura e futebol, que se desenha no Brasil três
ou quatro décadas depois daquela descrita em "Latejando
com o Futebol".
Que não se trata exatamente da mesma oposição,
fica claro, porque agora não se trata de "chefes de
fila que se digladiavam naquele longínquo 1925". Falando
das décadas de 50 e 60, quero contrapor dois poetas que,
antes de se digladiarem, se acumpliciam num exercício muito
semelhante de escrita e pensamento. Falo de Carlos Drummond de Andrade
e de João Cabral de Melo Neto.
Em 1957, Drummond reproduz, em "Fala Amendoeira", uma
crônica cujo tema é "O Mistério da Bola",
que se abre com o seguinte parágrafo: "Quando Bauer,
o de pés ligeiros, se apoderou da cobiçada esfera,
logo o suspeitoso Naranjo lhe partiu ao encalço, mas já
Brandãozinho, semelhante à chama, lhe cortou a avançada
.
A tarde de olhos radiosos se fez mais clara para contemplar aquele
combate, enquanto os agudos gritos e imprecações em
redor animavam os contendores. (...) A essa altura, já o
cansaço e o suor chegam aos joelhos dos combatentes, mas
o Atrida enfurecido, como o leão que, fiado na sua força,
colhe no rebanho a melhor ovelha, rompendo-lhe a cerviz e despedaçando-a
com fortes dentes, para em seguida sorver-lhe o sangue e as entranhas
-investe contra o desprevenido Naranjo e atira-o sobre a verdejante
relva calcada por tantos pés celestes". Em chave irônica,
é claro, uma das penas mais econômicas de nossa literatura
faz lembrar aqui o estilo da crônica de Coelho Neto. Nem faltarão
os pés diversamente adjetivados: ligeiros, alados, celestes
(e mesmo aladas plantas). No final, o gol é assim narrado:
"E é quando o divino Baltazar, a quem Zeus infundiu
sua energia e destreza, arremete com a submissa pelota e vai plantá-la,
qual pomba mansa, entre os pés do siderado Carbajal".
Aqui, a comicidade do desencontro entre estilo elevado e assunto
cotidiano não é involuntária: pelo contrário,
é intencional e tem algo de autocrítica (embora seja
de notar que uma equipe formada por jogadores como Homero, Aquiles,
Heitor, Heleno, Hércules, Leônidas, Zenon e Sócrates
talvez merecesse elogio de estilo jônico, ático ou
lacedemônio). A confissão da incapacidade de compreender
o "mistério da bola" ou a imensa paixão
investida em algo tão ideal e formal (um objeto de couro
que transpõe uma linha convencional). À sua maneira,
trata-se também de fazer homenagem ao futebol, mas uma homenagem
feita à distância, diante de um mistério que,
como todos os mistérios, exige reverência. Decididamente,
Drummond jamais "esteve lá", como dizem nossos
radialistas.
Diferente é o caso de João Cabral, que jogou futebol.
Lembro aqui o seguinte poema, publicado em "Museu de Tudo"
(1966-1974), sob o título de "Ademir da Guia":
"Ademir impõe com seu jogo/ o ritmo do chumbo (e o peso),/
da lesma, da câmara lenta,/ do homem dentro do pesadelo.//
Ritmo líquido se infiltrando/ no adversário, grosso,
de dentro,/ impondo-lhe o que ele deseja,/ mandando nele, apodrecendo-o.//
Ritmo morno, de andar na areia,/ de água doente de alagados,/
entorpecendo e então atando/ o mais irrequieto adversário".
O curioso, nesse poema, é que sua linguagem, sem ser inadequada
ou grandiloquente, não se limita a romper, provocativamente,
como o poema de Oswald de Andrade (ou poema "piada"),
a linha que separa o campo do "poetizável" do campo
do "não-poetizável". Pertencia já
ao passado o tempo em que era necessário mobilizar estrategicamente
a experiência cotidiana para enriquecer a poesia contra o
espírito poético exaurido e empobrecido por sua exclusiva
consagração a temas elevados, distantes e passados,
ou pela obsessão cátara com a pureza da última
flor do Lácio.
O futebol já podia tornar-se "objeto digno de poesia",
mesmo na sua mais estrita tecnicidade. O poema de João Cabral
dá a ver com precisão, com os recursos da poesia,
o "estilo" de Ademir da Guia (a palavra estilo aplica-se
a ele mais, talvez, do que a qualquer outro jogador; pensemos em
suas pernas longas e nos passos cadenciados, ritmados como um poema),
que dava a ilusão da lentidão.
Pobres palmeirenses mais jovens, que jamais o viram jogar! Compare-se
a fenomenologia de Ademir com as fenomenologias de situações
e objetos que abundam nos livros de João Cabral: como, por
exemplo, as do "ovo", do "revólver",
do "açúcar" e assim por diante.
Aqui também se trata de uma acumulação disciplinada
de metáforas que se corrigem mutuamente, tornando visível
a forma de um modo de ser (captada apenas confusamente na percepção
bruta), numa espécie de exercício metódico
da "variação imaginária". A ilusão
da lentidão -do pântano, das águas paradas,
da areia movediça- como armadilha que paralisa o adversário
e desencadeia a jogada fulminante. Com João Cabral, a assimilação
literária do futebol deixou de ser mera retórica ou
simples provocação. Tornou-se, finalmente, assunto
real para o conhecimento literário do Mundo.
Leia mais: O
novo estilo do pensamento
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