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Para
Nabuco, se o Brasil tivesse sido descoberto três séculos
depois, seria "sadio" como a Austrália ou o Canadá
(27/02/2000)
Reler "O Abolicionismo"
EVALDO CABRAL DE MELLO
Na
sua análise do impacto global da instituição
servil sobre a vida brasileira, Nabuco não hesita mesmo em
aventurar-se ao exercício do que hoje chamaríamos
história virtual ou contrafactual. Segundo ele, "ninguém
pode ler a história do Brasil no século 16, no século
17 e em parte do século 18 (...) sem pensar que a todos os
respeitos houvera sido melhor que o Brasil fosse descoberto três
séculos mais tarde".
Nabuco não explica porque, mas seu pressuposto parecer ser
o de que a colonização tardia da América portuguesa
se teria processado numa conjuntura internacional bem diversa, em
que os interesses e o poder da Inglaterra e os valores dominantes
do Iluminismo e da Revolução Francesa teriam tornado
inviável a implantação de um regime escravista
na América portuguesa, ao menos na escala que adquirira no
passado.
É certo que o nosso desenvolvimento não teria sido
tão acelerado como o das colônias de língua
inglesa, de vez que Portugal não dispunha dos recursos materiais
das grandes potências.
É certo também que a população seria
substancialmente menor, embora tivesse a vantagem de ser culturalmente
homogênea, sem falar em que os efeitos colaterais da escravidão,
como a grande propriedade e a depredação do meio ambiente,
não teriam avançado a ponto de prejudicar a economia
e esterilizar o trabalho. O que Nabuco tinha em vista era contestar
o argumento de Oliveira Martins, que, em "O Brasil e as Colônias
Portuguesas", pretendera que o trabalho escravo fora o preço
a pagar pelo povoamento, pois, sem aquele, este não teria
sido possível.
"Isso é exato", admite Nabuco, "mas esse preço
quem o pagou e está pagando não foi Portugal, fomos
nós; e esse preço a todos os respeitos é duro
demais e caro demais para o desenvolvimento inorgânico, artificial
e extenuante que tivemos".
A
nódoa da escravidão
E num julgamento tanto mais insuspeito quanto, ao contrário
de muitos intelectuais brasileiros da época, ele nunca cedeu
à tentação do antilusitanismo, Nabuco assinalava:
"A africanização do Brasil pela escravidão
(pela escravidão, note-se bem, não pela presença
africana) é uma nódoa que a mãe-pátria
imprimiu na sua própria face, na sua língua e na única
obra nacional verdadeiramente duradoura que conseguiu fundar".
Poder-se-ia sustentar que, sem a escravidão e sem a economia
açucareira de que ela fora a base, o Brasil teria sido perdido
para sempre por Portugal, de vez que não lhe teria sido possível
repelir a ocupação holandesa, mas é provável
que ele estivesse "crescendo sadio, forte e viril como o Canadá
e a Austrália".
Ao contrário da grande maioria de brasileiros cultos da época,
Nabuco não acreditou no argumento da inadaptação
climática do europeu aos trópicos, tanto mais, lembrava,
que as populações da Europa meridional haviam recebido
ao longo da sua história uma dose considerável de
sangue mouro e africano. E concluía: "Ninguém
podia dizer o que teria sido a história se acontecesse o
contrário do que aconteceu", de vez que, entre um Brasil
holandês ou francês, explorado por escravos, e um Brasil
português igualmente escravocrata, "ninguém sabe
o que teria sido melhor".
Colonização
gradual
O que, contudo, não lhe parecia duvidoso é que, entre
um Brasil lusitano e escravocrata e um Brasil lusitano sem instituição
servil, "a colonização gradual do território
por europeus, por mais lento que fosse o processo, seria infinitamente
mais vantajosa para o destino dessa vasta região". Nabuco
examina outro par de alternativas que, à primeira vista,
poderia parecer acadêmico, mas que ilustra uma vantagem a
mais da sua desatualização relativamente às
teorias sociológicas em voga: "Entre o Brasil explorado
por meio de africanos livres por Portugal, e o mesmo Brasil, explorado
com escravos também por portugueses, o primeiro a esta hora
seria uma nação muito mais robusta do que é
o último".
É sabido que a doutrina da desigualdade inata entre as raças
exerceu duradoura influência sobre o pensamento brasileiro
dos finais do Segundo Reinado e ao longo da República Velha.
Foram elas que forneceram as bases reputadas científicas
para nossas atitudes modernizadoras predominantes até os
anos 30 do século 20. Nabuco, porém, nunca embarcou
nessa canoa, embora sua oposição ao plano de imigração
chinesa do gabinete Sinimbu possa insinuar uma dúvida a respeito.
Mas tanto em "O Abolicionismo" (Ed. Nova Fronteira) quanto
nos discursos do Recife, o essencial para ele não é
a raça, mas a organização social. Já
vimos que, ao se referir à "africanização
do Brasil", tivera o cuidado de acrescentar a qualificação
"pela escravidão".
É certo que, noutro trecho, ele assinala que "muitas
das influências da escravidão podem ser atribuídas
à raça". Mas, quando examinamos os exemplos que
dá, constata-se que a palavra "raça" é
empregada sem rigor conceitual, desleixadamente, se é que
ela possa ser jamais utilizada de maneira precisa.
A prova é que Nabuco enumera sob essa etiqueta características
que hoje seriam consideradas de natureza cultural, como a influência
da religiosidade africana ou a corrupção da língua
portuguesa através da escravidão doméstica.
Nação
de proletários
A escravidão fizera do Brasil uma nação de
proletários, "porque os descendentes dos senhores logo
chegam a sê-lo". No setor agrícola, a população
formalmente livre achava-se de fato submetida à grande propriedade,
na sua condição de moradores, de meeiros, de condiceiros.
Tais camadas, equivalentes a 10 ou 12 milhões de habitantes,
tinham uma autoconsciência inferior à do próprio
escravo. Mas o regime servil condicionara igualmente a sorte das
populações que não lhe estavam diretamente
vinculadas, que se dedicavam a atividades econômicas que não
empregavam o trabalho escravo e que até ocupavam diferente
espaço físico.
A atividade comercial era também entorpecida. É certo
que, anteriormente à abolição do tráfico,
as relações entre ela e o trabalho escravo haviam
sido da maior intimidade, pois o comércio abastecera a lavoura
de mão-de-obra ao longo de três séculos, sendo
o seu autêntico banqueiro.
Com o fim do tráfico, tais relações se haviam
tornado menos estreitas, mas a dependência continuava inalterável,
pois os principais clientes do comércio eram donos de escravos,
de modo que ele seguia sendo um prolongamento do escravismo, "o
mecanismo pelo qual a carne humana é convertida em ouro e
circula, dentro e fora do país, sob a forma de letras de
câmbio".
Mercado
de eleitores
Através do crédito, a escravidão reduzira o
fazendeiro de café e o senhor de engenho a um "empregado
agrícola que o comissário ou o acionista de banco
tem no interior para fazer o seu dinheiro render acima de 12%",
afirmação que dá a pista para rever uma das
falsas idéias mais persistentes da historiografia brasileira,
a da dominação irrestrita da grande lavoura sobre
o processo de decisões do Segundo Reinado.
Nabuco encarou com ceticismo a eficácia das reformas políticas
do Segundo Reinado, pensando que, devido à escravidão
e às instituições ancilares, todas essas reformas
produziriam efeitos perversos.
Da Lei Saraiva, que criara o voto direto, para dar representatividade
ao sistema político, resultara apenas o crescimento da participação
escravocrata no Parlamento, convertido "num verdadeiro Congresso
Agrícola".
A revisão do sistema de recrutamento, que visara podar a
influência dos grandes proprietários sobre as camadas
livres da população, dera apenas lugar ao "serviço
obrigatório da enxada". Após haver criado o mercado
de escravos, o regime servil inventava "o mercado de eleitores".
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questão de nuança
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