Leia
trechos de "Os Sertões"
A TERRA
"Ao sobrevir das chuvas, a terra, como vimos, transfigura-se
em mutações fantásticas, contrastando
com a desolação anterior.
Os vales secos fazem-se rios. Insulam-se os cômoros
escalvados, repentinamente verdejantes. A vegetação
recama de flores, cobrindo-os, os grotões escancelados,
e disfarça a dureza das barrancas, e arredonda em colinas
os acervos de blocos disjungidos -de sorte que as chapadas
grandes, entremeadas de convales, se ligam em curvas mais
suaves aos tabuleiros altos. Cai a temperatura. Com o desaparecer
das soalheiras anula-se a secura anormal dos ares. Novos tons
na paisagem: a transparência do espaço salienta
as linhas mais ligeiras, em todas as variantes da forma e
da cor.
Dilatam-se os horizontes. O firmamento, sem o azul carregado
dos desertos, alteia-se, mais profundo, ante o expandir revivescente
da terra.
E o sertão é um vale fértil. É
um pomar vastíssimo, sem dono.
Depois tudo isto se acaba. Voltam os dias torturantes; a atmosfera
asfixiadora; o empedramento do solo; a nudez da flora; e nas
ocasiões em que os estios se ligam sem a intermitência
das chuvas -o espasmo assombrador da seca."
O
HOMEM
"O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não
tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos
do litoral.
A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista,
revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável,
o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações
atléticas.
É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo,
reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O
andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta
a translação de membros desarticulados. Agrava-o
a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência
que lhe dá um caráter de humildade deprimente.
A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao
primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia
o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo
sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela.
Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça
trajetória retilínea e firme. Avança
celeremente, num bambolear característico, de que parecem
ser o traço geométrico os meandros das trilhas
sertanejas. (...)
É o homem permanentemente fatigado."
A
LUTA
"Concluídas as pesquisas nos arredores, e recolhidas
as armas e munições de guerra, os jagunços
reuniram os cadáveres que jaziam esparsos em vários
pontos. Decapitaram-nos. Queimaram os corpos. Alinharam depois,
nas duas bordas da estrada, as cabeças, regularmente
espaçadas, fronteando-se, faces volvidas para o caminho.
Por cima, nos arbustos marginais mais altos, dependuraram
os restos de fardas, calças e dólmãs
multicores, selins, cinturões, quepes de listras rubras,
capotes, mantas, cantis e mochilas...
A caatinga mirrada e nua, apareceu repentinamente desabrochando
numa florescência extravagantemente colorida no vermelho
forte das divisas, no azul desmaiado dos dólmãs
e nos brilhos vivos das chapas dos talins e estribos oscilantes...
Um pormenor doloroso completou essa encenação
cruel: a uma banda avultava, empalado, erguido num galho seco,
de angico, o corpo do coronel Tamarindo.
Era assombroso... Como um manequim terrivelmente lúgubre,
o cadáver desaprumado, braços e pernas pendidos,
oscilando à feição do vento no galho
flexível e vergado, aparecia nos ermos feito uma visão
demoníaca."
Trechos extraídos do livro "Os Sertões".
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