Guerra
foi uma mostra das estratégias militares da época,
em oposição à imemorial tática
de guerrilha usada pelos jagunços
Baionetas do fim do mundo
FREDERICO PERNAMBUCANO DE MELLO
especial para a Folha
Não se pode concluir que a guerra de Canudos tenha
sido um conflito arcaico do ponto de vista militar.
Ao contrário, os sinais de modernidade pululam nos
registros, no tocante à ação desenvolvida
e aos equipamentos empregados, mesmo que o observador se atenha
às ocorrências palpáveis, deixando de
lado, por cautela, intenções doutrinárias
concebidas laboriosamente, mas que morriam muitas vezes no
papel, fulminadas por sua própria complexidade. Do
lado da tropa, são sinais de modernidade presentes
na campanha empreendida de junho a outubro de 1897, a nosso
ver:
1 - O emprego combinado das armas, notadamente nas ações
ofensivas, com artilharia, infantaria e cavalaria se prestando
mutuamente, em tempo sucessivo ou simultâneo. A precedência
da barragem de fogo à intervenção da
infantaria, a presença de canhões mais leves
deslocando-se "pari passu" com o infante na carga,
ou a guarda de flanco desse infante feita pelo lanceiro, tudo
são exemplos do empenho de ação combinada.
2 - A ocupação, pela infantaria, de posição
de partida para a carga à baioneta, feita sob a proteção
da noite, da irregularidade do solo ou da vegetação,
com vistas a furtar o infante ao fogo inimigo de longo alcance.
Com o aperfeiçoamento dos fuzis, a partir sobretudo
do meado do século, não mais havia lugar para
a disposição da infantaria a peito descoberto.
3 - O emprego de peças mais leves de artilharia, acompanhando
e cobrindo proximamente os batalhões de infantaria
por ocasião das cargas, como se deu no ataque de 18
de julho, com o uso volante de dois canhões Krupp,
ou no de 1º de outubro, com dois Nordenfelt de fogo rápido.
4 - O uso do diversionismo, com o fim de desviar a atenção
do inimigo do ponto real do ataque, como fez o tenente-coronel
Siqueira Menezes, antecedendo o ataque de 18 de julho com
manobras aparatosas levadas a efeito em espaço desprezível.
5 - O uso exclusivo de canhões de retrocarga, quando
o Exército dispunha em seus arsenais de muitos La Hille,
de carregar pela boca, oriundos da Guerra do Paraguai.
6 - O uso de fuzis Mannlicher, modelo 1888, calibre 7,92 mm,
e Mauser, modelo 1895, calibre 7 mm, ambos de tiro tenso,
longo alcance, com emprego de cartuchos metálicos de
pólvora sem fumaça, e repetição,
em sistema de ferrolho, para cinco tiros. À luz da
literatura especializada, inclusive a estrangeira, não
vacilamos em considerar moderno o primeiro e moderníssimo
o Mauser. As forças policiais portavam fuzis Comblain,
modelo 1874, calibre 11 mm, de tiro simples e cartucho metálico
de pólvora negra. Um só fuzil de carregar pela
boca não havia em mão das forças legais
em Canudos. Moderno era também, por fim, o carrego
de 150 cartuchos na patrona por cada soldado.
7 - O trabalho da comissão de engenharia no levantamento
do chamado teatro de operações e suas adjacências,
disso resultando a elaboração de mapas e a identificação
de aguadas, sem esquecer a ação prévia
da extensão de linhas telegráficas.
8 - A adoção, pela infantaria, de uma disposição
tática relativamente diluída -à luz das
formações cerradas vigentes em passado recente-,
com o que se procurava fazer face à perícia
revelada pelo atirado jagunço com o armamento moderno
que arrecadara às primeira, segunda e terceira expedições
militares enviadas contra o Belo Monte.
9 - O emprego de frações de força com
a missão de varrer a bala o terreno à frente
dos batalhões de infantaria que avançavam na
carga a baioneta. A providência, ainda da era napoleônica,
havia sido renovada pelos prussianos no meado do século.
10 - A utilização, notadamente no final da guerra,
do querosene e da dinamite como expressões embrionárias
dos então nascentes recursos do lança-chamas
e da granada de mão.
Do lado jagunço, apesar do caráter imemorial
da guerra de guerrilhas -no fundo, a velha arte da caçada
em meio silvestre-, usada com perícia pela gente humilde
desde a madrugada da nossa história militar, no século
17, contra holandeses, índios irredentos e negros aquilombados,
cabe assinalar como pontos mais de inteligência intuitiva
que propriamente de modernidade, os seguintes:
1 - A invisibilidade do combatente, por conta da roupa ou
do entrincheiramento. Às vezes, dos dois fatores. O
jagunço é invisível, repetiam os soldados
à exaustão, procurando a poeira -campo de concentração
a céu aberto-, movidos pela curiosidade de ver o inimigo.
2 - A eficácia estonteante com que formavam, desmanchavam
e recompunham linhas de atiradores em instantes, obedecendo
ao trilar de apitos ou, nas distâncias maiores, a tiros
de bacamarte.
3 - O uso combinado do fuzil moderno, que despede bala única
e afilada, com o velho bacamarte avoengo, de pederneira ou
espoleta, capaz de lançar uma chuva de metralha composta
por pelouros de chumbo, pedras, pregos, lascas de chifre e
o mais que estivesse à mão na necessidade, inclusive
umas pedrinhas muito compactas de hematita, existentes pelas
redondezas, segundo ainda hoje se vê ali.
Os registros de compra de enxofre e salitre não deixam
dúvida quanto à produção da pólvora
negra no arraial. Saliente-se que esse emprego do bacamarte
se dava de modo espontâneo por quem dispunha de armamento
e munição do Exército -só de Moreira
César foram tomados para além de 500 mil cartuchos-,
devendo ser dito por fim que as companhias de infantes, na
Guerra do Vietnã, não deixavam de conduzir ao
menos uma escopeta de grosso calibre para o tiro fragmentário.
4 - A adoção de ordem tática extraordinariamente
diluída, como recurso de frustração da
artilharia.
5 - O ataque prioritário aos animais de tração
condutores da artilharia e dos carroções de
suprimento. Não havia pressa em atacar, em seguida,
a um inimigo assim imobilizado e apavorado no terreno.
6 - O tiro de ofensa ao acaso e de enervamento, dado de longa
distância -o fuzil moderno tem 2.000 m de pontaria graduada
e 4.000 m, de alcance máximo, embora a distância
ideal de emprego fique pelos 600 m -em intermitência
regular e incessante, pelo dia e pela noite. Enquanto o comando
legal esteve concentrado no alto da Favela, esse tiro chegou
a causar de 10 a 15 baixas a cada 24 horas, sem falar no terror
que disseminava pelo acampamento.
7 - O recurso igualmente psicológico da exposição
de corpos ou parte de corpos de inimigos em pontos salientes
das estradas, abatendo o moral da tropa que chegava.
Fechemos a análise com algumas palavras de remonta
ao tema das cores fortes e contrastantes do fardamento do
Exército -alumiadas, no caso de oficiais orgulhosos
como Moreira César ou Thompson Flores, por insígnias
metálicas reluzentes ao sol- e sobre o emprego da baioneta,
largamente feito ao longo da guerra. No primeiro caso, cabe
apenas fazer ênfase sobre o que dissemos acima: que
só com a campanha da Manchúria, em 1904, a consciência
militar internacional acode para o valor da invisibilidade
do combatente. E mais pode ser dito.
O "khaki" inglês, com o seu tom de barro desmaiado,
o "feldgrau" alemão, de um verde claro com
laivos de cinza, e o azul-horizonte, dos franceses, todos
com presença nas guerras coloniais, chegando ao primeiro
conflito mundial, são conquistas que não se
universalizam militarmente senão em nosso século.
Ao Exército brasileiro o cáqui só chega
por volta de 1904, como objeto de experimentação.
Quanto à baioneta -velho petrecho da segunda metade
do século 17-, se é certo que o regulamento
do exército francês, de 1875, a punha praticamente
em desuso, privilegiando o fogo de infantaria, cujas espingardas
vinham da metade do século numa evolução
tecnológica vertiginosa, após centenas de anos
de estacionamento na pederneira e na alma lisa, não
menos certo é que os russos, um outro grande exército
europeu à época, vêm a marchar para a
Guerra Russo-turca, de 1877-78, inteiramente fechados em torno
da máxima espaventosa de Suvarov, vertida no regulamento
oficial: "A bala é doida. Só a baioneta
triunfa".
E a baioneta intervém fortemente na Guerra Russo-japonesa
de
1904, chegando com prestígio à Guerra Mundial
de 1914-18. E não é só. Sem o caráter
de massa de outrora, há registros de sua utilização
na Segunda Guerra Mundial e até na Guerra da Coréia.
Que o leitor responda se essas duas marcas da guerra de Canudos
seriam expressões de arcaísmo da parte das forças
legais, como se tem comentado. Que se constituíssem
em impropriedades, não discutimos. E que essas impropriedades
pudessem ser flagradas à época, também
não, para isso bastando que o Exército se ativesse
mais ao estudo da nossa realidade que a bisbilhotar a doutrina
estrangeira. Mas aquele final de século, como vimos,
não se mostrava capaz de fertilizar os estudos castrenses,
o apelo ao pensamento estrangeiro revelando-se procedimento
até elogiável. Era estudo técnico-militar,
ao menos.
Curioso é que a falta de criatividade -de que se ressentiu
claramente o comando superior- tenha sobejado nas praças,
por meio da transformação de marmitas em raladores
de mandioca, da troca do quepe pelo chapéu-de-couro,
da organização de caçadas sem as quais
teriam morrido de fome, da descoberta da folha seca da aroeira
como sucedâneo para o fumo esgotado...
Não faltou ao combatente jagunço nem a intuição
militar, a custo afunilada para fim essencialmente defensivo,
nem a disciplina coletiva, que depende de treino e condução
em combate, nem a individual, a que repousa nos nervos. Mesmo
na hora extrema.
Perdeu-lhe, além da pujança indiscutível
de um Exército o seu tanto embaraçado em ambiente
exótico, mas sempre forte, a opção do
Conselheiro por uma estratégia de pura defesa estática
do seu Belo Monte.
Dantas Barreto já mostrou que, se os jagunços
tivessem despedido expedições para cair isolada
e sucessivamente sobre as colunas Silva Barbosa e Savaget,
antes de que estas se unissem à volta do arraial, teriam
desbaratado uma e outra. Houve riscos maiores. As guarnições-base
de Queimadas e Monte Santo se conservaram por meses com apenas
50 homens cada uma. Rebotalho de tropa de linha, polícia
ou patriotas arregimentados. Entre as bases, nenhum posto
de custódia pelos caminhos. Ninguém nas Umburanas,
ninguém no Rosário, vivalma em Jueté...
Os jagunços não cortaram as linhas do inimigo
porque não quiseram. Porque isso refugia das preleções
do Conselheiro. Não que faltasse ânimo para executar
uma estratégia ofensiva, para levar a guerra à
praça do inimigo, chegando a haver movimento de cabos-de-turma
nessa direção, num dos quais esteve envolvido
o chefe Pajeú, com quem, aliás, morreria a própria
linha de ação agressiva ainda a 24 de julho.
Mas a palavra contida do velho beato findava por se impor,
mesmo ao preço da morte de toda a sua gente.
Não é raro na história que uma estratégia
apenas defensiva alongue-se em renúncia à vitória
e decrete, por fim, a derrota completa. Foi assim em Canudos.
Seria assim com os boêres, na África do Sul,
na guerra movida contra os ingleses, de 1899 a 1902. À
margem o misticismo religioso, mas presente, em comum, a mística
não menos intensa da defesa dos campos, dos lares,
das fazendas e de toda uma cultura enfim, os bôeres,
guerreiros extraordinariamente habilidosos e resistentes,
tombam à própria estratégia. À
autolimitação. Nada desejavam senão a
defesa de seu mundo. Como o jagunço.
Frederico
Pernambucano de Mello é historiador, chefe da área
de documentação da Fundação Joaquim
Nabuco (Recife) e autor de "Guerreiros do Sol" (Ed.
Massangana, Recife), "Quem Foi Lampião" (Ed.
Stähli, Recife/Zurique), entre outros. Prepara o lançamento,
no próximo mês, de "A Guerra Total de Canudos"
(Ed. Stähli).
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