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Alexandre Kalache

Longevidade exige preparo ou reserva surpresas

Você já pensou em quem vai cuidar de você, provável longevo que me lê?

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Carmen Martínez, uma das mais eminentes epidemiologistas com quem a Espanha já contou, faleceu no início do mês. Nascida em Madri, onde se formou em Medicina em 1970, Carmen iniciou sua brilhante carreira em Barcelona. Lá, durante anos, dedicou-se ao cuidado de pacientes cancerosos.

retrato em preto e branco de Carmen Martínez. ela tem cabelos grisalhos e está com o rosto apoiado em uma das mãos, posando para a foto
A epidemiologista Carmen Martínez - Arquivo Pessoal

Nessa época, fez pós-graduação em Londres, de onde voltou determinada a criar o primeiro registro de câncer da Espanha, mostrando seu pioneirismo. Assim o fez em 1985, quando se integrou à recém-criada Escola Andaluza de Saúde Pública (EASP), em Granada. Ali criou um celeiro de projetos inovadores, centrados no tratamento e no cuidado do câncer.

Suas pesquisas permitiram a identificação de fatores de risco para diversos tipos de câncer, os estilos de vida para preveni-los –como a dieta mediterrânea –e o desenvolvimento de cuidados paliativos no caso de morte como desfecho inevitável.

A longa carreira de Carmen teve um caráter internacional, muito além da Europa, não só através de estudos multicêntricos. Ela foi disseminadora de conhecimentos e experiência por toda a América Latina, inclusive o Brasil.

Registros de Câncer são ferramentas indispensáveis para que políticas apropriadas sejam desenvolvidas. Dessa forma, o trabalho de Carmen Martínez teve um impacto considerável na qualidade do tratamento e cuidado do câncer a nível mundial.

Embora sua contribuição como fundadora do Registro de Câncer de Granada seja indiscutível, Carmen era, sobretudo, uma profissional de saúde pública de primeira grandeza. Como membro da equipe diretora da EASP desde 1985, sua atuação foi determinante no desenvolvimento de uma das mais vibrantes instituições de ensino e pesquisa em saúde pública da Europa por muitas décadas. Foi nessa capacidade que nos conhecemos.

Na época, eu formava parte do corpo docente da London School of Hygiene and Tropical Medicine (LSHTM), a ‘mãe’ de todas as escolas de saúde pública. A Espanha tinha carência de material didático e cursos de especialização e um sentido de urgência imensurável face ao desafio de dotar o país com profissionais competentes para estabelecer um serviço nacional de saúde moldado no modelo britânico.

Um convênio foi estabelecido entre as duas instituições e eu fui designado pela LSHTM como ‘ponte’, tendo Carmen como contraparte. Dali nasceu uma amizade profunda e duradoura.

Carmen aposentou-se precocemente e decidiu voltar a viver em sua Madri natal. Não contava que em pouco tempo sua reserva social desaparecesse com a morte dos pais e amigos próximos. Viu-se cada vez mais isolada. Contava ainda menos que viesse a desenvolver doença de Alzheimer. Não havia se preparado para tal. Não planejou sua vida pós-diagnostico. Terminou perdendo sua autonomia por completo.

Por não ter tido filhos, coube a um irmão, um virtual estranho para ela, assumir as rédeas de sua vida. Foram anos penosos para nós, amigos, proibidos por ele de até mesmo visitá-la. Não lhe faltavam recursos, mas já não era Carmen quem tomava decisões de como empregá-los.

A mensagem ficou-me taxativamente clara. Os testamentos de vontades antecipadas e as medidas legais que nos possam proteger são indispensáveis enquanto ainda temos a capacidade de expressá-las. Ou surpresas não lhe faltarão.

Você já pensou em quem vai cuidar de você, provável longevo que me lê?

SÉRIE DISCUTE QUESTÕES DA LONGEVIDADE

A seção Como Chegar Bem aos 100 é dedicada à longevidade e integra os projetos ligados ao centenário da Folha, celebrado em 2021. A curadoria da série é do médico gerontólogo Alexandre Kalache, ex-diretor do Programa Global de Envelhecimento e Saúde da OMS (Organização Mundial da Saúde).

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