Descrição de chapéu Minha História

'Nunca tive ódio pelo assassino da minha filha, mas agi por justiça'

Gilma Rossafa ajudou a desvendar crime após episódio de violência em Osasco, em 1997, virou assistente social e fundou associação em homenagem a Camila Rossafa

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São Paulo

Faz 26 anos que a assistente social Gilma Rossafa perdeu a filha Camila em um episódio violento no Jardim Conceição, em Osasco.

Ela relembra aquela noite, os 40 dias de angústia que se seguiram no hospital e o desfecho no Dia das Mães de 1997. E ainda duas lutas: para que sua família encontrasse a paz e a justiça fosse feita.

"Nunca tive ódio pelo assassino da Camila, mas agi contra a impunidade", diz ela, que ajudou a desvendar o crime e sofreu ameaças.

A assistente social Gilma Rossafa em cena do documentário "Só Juntos - Dá Pra Mudar. É Só Começar", da ONG Parceiros Voluntários
A assistente social Gilma Rossafa em cena do documentário "Só Juntos - Dá Pra Mudar. É Só Começar", da ONG Parceiros Voluntários - Divulgação/Parceiros Voluntários

Anos depois, o Jardim Conceição ganhou o CEU Camila Rossafa e uma associação, fundada por Gilma, que atua na defesa de direitos e por justiça social.

"Somos negros, da periferia, da classe trabalhadora, mas temos capacidade e com oportunidade vamos ascendendo."

Filha de nordestinos e integrante de movimentos sociais, a assistente social e diretora-executiva da Associação Camila tem parte de sua história retratada no documentário "Só Juntos - Dá Pra Mudar. É Só Começar", da ONG Parceiros Voluntários, que estreia hoje (21), às 21h, no site sojuntos.org.br.

"Minha história se mistura à da grande maioria dos nordestinos. Meu avô era filho de escravos, meu pai servente de pedreiro e minha mãe doméstica.

Éramos de um povoado na Bahia e chegamos em dia de carnaval na praça Princesa Isabel, em São Paulo. Era 1970. Tinham tantas luzes, eu e meus irmãos grudamos na saia da mãe.

Fomos morar em dois cômodos em Osasco. Era tudo mato, não tinha asfalto nem luz elétrica. Famílias que moravam em fundos de quintal e em favelas foram ocupando o Jardim Conceição.

No começo dos anos 1990, o bairro era desorganizado e violento. De 1999 a 2003, mais de 200 pessoas foram assassinadas. Tinha toque de recolher.

Isso foi mudando com a organização da comunidade e missões da Igreja Católica. Eu era ligada ao movimento social.

Criamos frentes para pressionar o poder público, como a caminhada de mais de 2.000 pessoas até o cemitério levando plaquinhas de entes queridos. Aquilo mudou o Conceição. Veio posto de saúde, creche, asfalto, saneamento. Derrubamos a violência em mais de 80% no bairro.

Mas nada disso impediu que eu encarasse a violência urbana dentro de casa. E eu parei de me perguntar o porquê.

Era noite de abril de 1997 e minha filha Camila, 16, foi acompanhar a amiga Renata até em casa. Eram só sete casas depois da nossa. Quando chegaram, encontraram o namorado de Renata, que estava de carro e ia buscar uma pizza. Minha filha foi junto.

Nada disso impediu que eu encarasse a violência urbana dentro de casa. E eu parei de me perguntar o porquê.

Gilma Rossafa

sobre episódio envolvendo a filha no Jardim Conceição, em Osasco (SP)

No trajeto, o rapaz recebeu um telefonema. Desviou a rota da pizzaria, deixou as meninas no carro e entrou em um comércio. Elas ouviram tiros. O rapaz tinha sido assassinado em um acerto de contas.

Minutos depois, dois homens entraram no carro. Rodaram a esmo pela rodovia Raposo Tavares.

O telefone tocou em casa depois das onze e meia. Tinham achado duas meninas baleadas. Fomos para o Hospital das Clínicas e encontramos Camila, que levou tiros nos braços e na cabeça.

Uma semana depois, ela não abria os olhos e salivava, mas falava comigo. Os médicos diziam que era como se Camila estivesse em um carro em alta velocidade, num temporal e sem freio.

Nossa guerreira lutou por 40 dias, foi um sofrimento acompanhar. Daí os órgãos foram parando. Minha filha me deixou em um Dia das Mães. Agradeço ela não ter morrido naquele matagal.

Fotos de Camila Rossafa, que perdeu a vida em um episódio de violência no Jardim Conceição, em Osasco, em 1997
Fotos de Camila Rossafa, que perdeu a vida em um episódio de violência no Jardim Conceição, em Osasco, em 1997 - Divulgação/Parceiros Voluntários

A amiga ficou no programa de proteção à testemunha, foi para outro estado, casou e teve filhos.

Sabe, Camila tinha medo de água. Tinha me confidenciado que gostaria de ter suas cinzas jogadas no mar. Levei cinco anos para tomar coragem.

Fiquei esperando na beira do mar enquanto o barco sumia no horizonte com as cinzas e pedrinhas que ela colecionava. Estava imersa em pensamentos quando algo bateu nas minhas pernas.

A pedrinha preta de Camila tinha voltado. Foi um sinal. Tínhamos que seguir nossa luta. Pedra é fortaleza e coragem.

Fui estudar Serviço Social e, em 2004, estruturei a Associação Camila. Atuamos na defesa de direitos sociais e por uma cultura de paz. Atendemos crianças, adultos e idosos em articulação com assistência social, escolas e conselho tutelar.

Ano passado, voltei a me capacitar com apoio da ONG Parceiros Voluntários. Aprendi sobre captação de recursos, que é tão difícil pra gente.

ONG Parceiros Voluntários ofereceu curso de capacitação para membros de organizações sociais
ONG Parceiros Voluntários ofereceu curso de capacitação para membros de organizações sociais - Divulgação/Parceiros Voluntários

O Jardim Conceição ainda é violento, o tráfico está pesado. Mas não perdemos nenhum jovem nosso para o crime. Somos negros, da periferia, da classe trabalhadora, mas temos capacidade e com oportunidade vamos ascendendo.

E eu sou divorciada, batalho muito, faço feijoada, pastel e bazar para manter a associação. Tenho paixão por política pública, de alcance, mas minha missão é aqui.

Lutei para que meus outros filhos não fossem traumatizados. Nunca tive ódio pelo assassino da Camila, mas agi contra a impunidade, me levantei pela justiça.

Ajudei a desvendar o crime e fui ameaçada pela quadrilha. Foram presos, um fugiu, me perseguiu. Depois do julgamento, jurei que aquilo não destruiria minha família, que é de paz.

Amor, perdão e lutar por um mundo melhor, de justiça social e paz, valem a pena. É como diz aquela música: "Põe a semente na terra, não será em vão."

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