Descrição de chapéu Causas do Ano

Oito gráficos que explicam a escalada da fome no Brasil

Série de reportagens examina causas e soluções para a insegurança alimentar no projeto Causa do Ano 'Fome de quê? Soluções que inspiram'

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São Paulo

O que leva um país a reduzir pela metade o índice de fome em sua população e, em menos de dez anos, retroceder a patamares de três décadas atrás, com 33 milhões sem ter o que comer?

Há quem culpe a crise econômica ou a alta no preço dos alimentos, a pandemia, o desemprego, a fila para acessar benefícios sociais. A resposta é: tudo isso e um pouco mais.

Cozinheiros preparam refeições na sede da ONG Gastromotiva , no Rio de Janeiro - Mauro Pimentel - 22.abr.23/AFP

Nos próximos três meses, a Folha vai publicar uma série de reportagens para entender o que nos levou a esse ponto e quais são os possíveis caminhos de saída. O projeto "Fome de quê? Soluções que inspiram" é a nova Causa do Ano, um canal da Folha Social+ que dá visibilidade a questões sociais no jornal.

A primeira reportagem se debruça sobre as causas que levaram o Brasil a ter mais da metade da população vivendo com algum grau de insegurança alimentar e 15,5% passando fome, segundo pesquisa de 2022 da Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional).

São oito gráficos representando fatores que, combinados, formaram uma "tempestade perfeita" para o aumento dos três níveis de insegurança alimentar: leve (incerteza quanto ao acesso a alimentos em um futuro próximo ou quando a qualidade da alimentação já está comprometida), moderada (quantidade insuficiente de alimentos) e grave (privação do consumo de alimentos e fome).

"Destruir é muito mais rápido do que construir. Temos que garantir que as políticas públicas se tornem políticas de Estado, mais difíceis de desmontar", afirma o economista Francisco Menezes, consultor de políticas da ActionAid.

Renato Maluf, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e ex-presidente da Rede Penssan, evoca a figura da "porta giratória da pobreza e da fome".

"Dependendo de como esse enfrentamento é feito, quem estava em uma situação limite pode superar a linha da pobreza, mas isso não se sustenta e a volta é muito provável. Temos que nos perguntar quão perenes foram os instrumentos adotados", diz.

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Pessoas buscam restos de hortaliças em feira no Tremembé, na zona norte de São Paulo - Rubens Cavallari - 14.set.22/Folhapress

Para Elisabetta Recine, professora da UnB e atual presidente do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), mais do que bons programas, é necessária uma articulação de bons programas. "A fome é um farol, a expressão mais perversa da desigualdade. Não dá para erradicá-la só com políticas agrícolas ou de assistência social."

Atual coordenadora da Rede Penssan, a professora da UFBA (Universidade Federal da Bahia) Sandra Chaves também defende uma retomada com foco na permanência. "Às vezes bate um desânimo, mas a história mostra que sabemos combater a pobreza e a fome. Agora precisamos assegurar esses direitos."

Crescimento da extrema pobreza

Com a relação direta entre a renda das famílias e a segurança alimentar, o crescimento da extrema pobreza é uma das explicações mais óbvias para a piora da fome.

Em 2021, o país chegou a 17,9 milhões pessoas vivendo com menos de US$ 1,90 por dia, 48,2% a mais do que no ano anterior. Mas a evolução do índice mostra uma piora contínua desde 2014, com uma queda pontual no ano de 2020 devido ao Auxílio Emergencial distribuído na pandemia.

"Mesmo antes da divulgação de dados sobre insegurança alimentar, a gente já previa que a fome estava aumentando, pois o índice de pobreza e de extrema pobreza era crescente. Em 2019 isso se intensifica muito e com a pandemia, piorou", diz Recine.

Inflação dos alimentos

A inflação no preço dos alimentos —que chegou a 37,5% entre o fim de 2019 e o de 2020— pressionou especialmente o bolso dos mais pobres e afetou ingredientes básicos como o arroz (que acumulou alta de 76% em 2020), o feijão (45,38%) e o óleo de soja (103% no mesmo período).

As razões são complexas, mas duas delas foram mais lembradas pelos entrevistados: a desvalorização do real frente ao dólar, que pressionou o preço de produtos básicos no mercado interno, e a interrupção da formação de estoques públicos por seis anos.

Outra faceta é a troca de alimentos in natura por opções mais baratas e menos saudáveis —como salsicha ou macarrão instantâneo. "As pesquisas mostram uma redução no consumo de arroz e feijão e o aumento de refrigerantes e produtos açucarados, que dão uma sensação de energia imediata", diz Chaves. "Isso significa mais obesidade e mais doenças."

Desmonte de políticas de segurança alimentar

A drástica redução no orçamento federal para ações de segurança alimentar enfraqueceu ou paralisou programas que tinham ajudado o país a sair do Mapa da Fome da ONU.

Um deles é o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que determina a compra de 30% de alimentos destinados a escolas, hospitais e outros equipamentos públicos diretamente de agricultores familiares. De 2012 a 2022, seu financiamento foi reduzido em mais de 90%.

A extinção do Consea no primeiro dia da gestão de Jair Bolsonaro é outro exemplo simbólico, segundo os entrevistados. "Quando se corta o diálogo do governo com a sociedade civil, a tendência é que as políticas públicas sejam planejadas entre quatro paredes, a partir de dados frios", afirma Recine.

Fragilização da rede de proteção social

A redução drástica dos recursos destinados à proteção social —que financiam o Suas (Sistema Único de Assistência Social)-- também rep ercutiu na segurança alimentar dos brasileiros ao reduzir a capacidade de auxílio aos milhões que caíram na pobreza.

"O desmonte dessa estrutura veio em um momento de queda da renda das famílias, do crescimento da população de rua, do aumento da fila do Bolsa Família, ou seja, quando ela era mais necessária", afirma Menezes.

Pandemia

A pandemia de Covid aprofundou e acelerou a crise de segurança alimentar que já vinha se agravando nos anos anteriores. Com as medidas de distanciamento social, um enorme contingente de brasileiros perdeu sua fonte de renda, especialmente aqueles que estavam na informalidade —situação de 41% dos trabalhadores em no fim de 2019.

Desperdício

Apesar da crise de insegurança alimentar, o Brasil não só produz muito alimento como também desperdiça uma parte significativa dele. O número de toneladas perdidas do cultivo ao varejo varia a depender da metodologia utilizada, mas o consenso entre os estudos é que a maior parte ocorre antes de chegar à casa do consumidor final.

"Fala-se muito no desperdício intradomiciliar, mas estudos mostram que o grande desperdício está na colheita, no transporte e no armazenamento. São toneladas de alimentos perdidos que deveriam estar nos mercados, reduzindo custos", diz Sandra Chaves.

Falta de apoio à agricultura familiar

Quem planta tem cada vez menos o que comer. A fome atingiu 21,8% dos lares de pequenos produtores rurais e as formas mais severas de insegurança alimentar (moderada e grave), 38% dos domicílios. "É um paradoxo terrível, mas é perfeitamente explicável pela quase extinção de programas de apoio à agricultura familiar", diz Maluf.

Ele cita como exemplos os cortes severos no PAA, no Pronaf (Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar) e no programa de distribuição de cisternas no Semiárido, além da extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário em 2016.

Piora da merenda escolar

Uma das facetas mais cruéis reveladas pelo último Vigisan é o aumento da fome em famílias com filhos pequenos, que quase dobrou de 2020 para 2022. Em 2021, o país registrou a maior taxa de internações de bebês por desnutrição em 14 anos.

O congelamento durante cinco anos dos repasses federais para o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) prejudicou aquela que é a principal (ou a única) refeição do dia para muitos estudantes. Com os alimentos cada vez mais caros, estados e municípios que não conseguiam complementar esse valor pioraram a qualidade da comida oferecida na merenda.

Segundo Menezes, isso repercute não só na alimentação do estudantes, mas de toda a família. "Já é comprovado que, em situações muito vulneráveis, as mães deixam de comer para alimentar os filhos", diz.

A causa 'Fome de quê? Soluções que inspiram' conta com o apoio da VR e da Rede Folha de Empreendedores Socioambientais.

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