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Ativista combate pobreza menstrual com unidades produtivas em cadeias

À frente da Herself, Raíssa Kist, finalista do Prêmio Empreendedor Social na categoria Inclusão Social e Produtiva, inova com itens de proteção, trilha educativa e ação em prisões

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Mulheres em situação de privação de liberdade costuram calcinhas menstruais reutilizáveis e têm sua pena reduzida em 1 dia a cada 3 trabalhados Renato Stockler/Folhapress

São Paulo

Finalista

  • Organização Herself
  • Empreendedora Raíssa Kist
  • Site https://herself.com.br

O dia em que Raíssa Assmann Kist visitou a penitenciária feminina de Guaíba, a maior do Rio Grande do Sul, em 2019, mudou sua vida.

Até ali a estudante prodígio de Santa Cruz do Sul (RS), neta de agricultores e pais contadores, já era ativista pela dignidade menstrual.

A militância começou no 3º ano de engenharia química na Universidade Federal do RS, quando constatou a falta de inovação para absorventes femininos num estudo de embalagens.

Raíssa Kist fundou a Herself, que produz calcinhas menstruais reutilizáveis e gera renda e dignidade menstrual - Renato Stockler/Folhapress

A imersão a levou à memória da primeira menstruação. "Foi tardia, aos 14 anos. As minhas amigas já tinham menstruado. Não sabia o que ocorria com meu corpo. Não tive informação na escola e na família. Foi constrangedor. Só falei para a minha mãe."

Raíssa viu que o modelo de protetores menstruais datava do meio do século 20 e que o descarte de absorventes fere a natureza.

Afinal, por mês, só no Brasil, 60 milhões de mulheres menstruam. Outra descoberta, a partir da escuta de 800 delas, foi a dimensão assustadora da pobreza menstrual.

Isso porque, apesar de leis, como a 14.214/2021, que garantiriam o acesso via estado a itens de proteção, 77% das mulheres do país já tiveram que "adaptar" produtos durante o ciclo. Leia-se usar jornal, pano, plástico, injeção (presídios) e até pão para lidar com o fluxo menstrual sem recursos.

"É muito triste. E não é só no Brasil. Nem a ONU, no ODS 5, que fala de equidade de gênero, cita a palavra menstruação ou pobreza menstrual."

Enquanto encarava o machismo por trás da frase "Agora virou mocinha" ("Que leva a mulher a trabalhos mais forçados e a põe sob risco de violência") e reunia 5.000 alcunhas para menstruação ("Está de chico", "de bode", "naqueles dias"), Raíssa quebrou a cabeça para criar algo que pudesse servir à mulher nesse período do mês.

Afinal, é ela que perde aula, trabalho e convívio social. E não foi fácil. "No início, tentamos usar até capa de guarda-chuva. Foi um desastre."

Ela teve o apoio da mãe como modelo de prova e até cursou confecção para convencer costureiras do que propunha.

E Raíssa, 29, conseguiu. Foram nove meses ("Tempo de gestação ou de o governo decidir uma política de um ano a outro") até chegar aos primeiros modelos de calcinha, biquíni e absorvente com tecidos tecnológicos (um hidrorrepelente e de toque seco, outro com tecido antimicrobiano e um terceiro impermeável).

Nem a ONU, no ODS 5, que fala de equidade de gênero, cita a palavra menstruação ou pobreza menstrual.

Raíssa Kist

fundadora da Herself

Raíssa já era aí disruptiva, e a inovação, firme —dura 4, 5 anos.

Para ingressar na moda e iniciar fábrica em Guaporé (RS), buscou capital. E, em agosto de 2017, abriu uma "vaquinha" na Catarse, em que pedia R$ 30 mil para produzir "calcinha menstrual brasileira, toda feita por brasileiras".

Atraiu 790 doadores em sete meses e juntou R$ 113.934 (379% a mais da meta inicial).

E o negócio floresceu: "As mulheres nos apoiaram. E vi ali o sonho de gerações, umas indicavam, outras compravam para filha, sobrinha, afilhada, irmã. Tinha avó comprando para neta. Não podíamos parar".

As doações subiram quando ela foi ao Encontro com Fátima Bernardes. "Fiquei tão nervosa e sem comer por dias. E lembrei que um mentor, Juliano Trevizan, me disse que a Herself é uma voz para mulheres. E sou a porta-voz. Aí fui."

Foto foca em mulher trabalhando com máquina de costura. O rosco não é mostrado. Apenas o colo, tronco e braços. A mulher usa camiseta branca e máscara anti-covid
O projeto ajuda mulheres em situação de privação de liberdade a se sentirem pertencentes a uma missão, pois contribuem para a saúde menstrual de estudantes - Divulgação

As calcinhas, à época, tinham nomes ícones de luta por direitos, como Frida, parte da ação educacional batizada de Revolucione seu Ciclo, feita com a sócia Victoria De Castro —a outra é Cristina Barbosa.

A causa reverberou. Aí Raíssa viu mulheres se unirem para que a Herself virasse política pública no país com a terceira maior população carcerária feminina, com 42.694 presas.

Um dos apoios foi de Débora Ferreira, presidente do Comitê Estadual de Políticas Públicas de Atenção às Mulheres Privadas de Liberdade e Egressas no RS.

"Raíssa atende a uma pauta invisível, porque temos políticas para negra, indígena, quilombola, mas não para mulher privada de liberdade. O projeto é política de inclusão social por tudo o que abarca: saúde, educação, trabalho, direitos."

Com apoio de mulheres da Superintendência dos Serviços Penitenciários, Raíssa criou núcleo produtivo com presas.

Raíssa atende a uma pauta invisível, porque temos políticas para negra, indígena, quilombola, mas não para mulher privada de liberdade.

Débora Ferreira

presidente do Comitê Estadual de Políticas Públicas de Atenção às Mulheres Privadas de Liberdade e Egressas no RS

E ativou a oficina no RS após outra "vaquinha". "Era preciso comprar material para fabricar absorventes em Guaíba. Lançamos campanha entre os defensores e, em dois meses, juntamos R$ 8.000, o que permitiu iniciar a produção", diz Cintia Luzzinato, diretora de núcleo da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul.

A produção em Guaíba reduz a pena (1 dia a menos para cada 3 trabalhados) das detentas e abastece a população carcerária. "Tinha 10 irmãos. Minha mãe não podia comprar absorvente. Hoje faço o que uso. Sei que ajuda mulheres até fora da cadeia", diz a detenta J. T., 32.

A revolução é vista pelos parentes, já que as encarceradas falam do trabalho e presenteiam com as peças produzidas.

O êxito no RS levou a Herself a Ceará, Rondônia e Minas Gerais e à Secretaria Nacional de Políticas Penais. Virou referência no governo federal e pautou o Procap Mulheres, edital para criação de oficinas nas cadeias.

"A conversa era só com a Segurança, e agora junta Educação, Saúde, Assistência Social", diz Raíssa, que atuará com 12 mil alunos da rede pública de Porto Alegre.

Com o que já vendeu na fábrica e o feito (e usado) por 2.000 presas, ela calcula que 20 toneladas de lixo não foram jogadas na natureza. E quem usa um de seus 48 produtos evita 150 kg de lixo por ano.

Raíssa parou com a engenharia química. E mantém legado da família de ascendência alemã.

No caso, o do tio Astor Rabuske, agente penitenciário, que encantava os olhos dela, quando criança, ao chegar feliz com cestas de alimentos colhidos no Instituto Penal de Mariante, onde atuou por 25 anos, em Venâncio Aires (RS).

"Tinha horta, gado leiteiro. A gente produzia tudo. Ia para creches, famílias. Presos adoravam trabalhar", diz o tio. "Busco isso com a Herself", diz ela, tanto que já levou a pauta da dignidade menstrual a 12 países e quer ver o Brasil referência.

Morando em SP, Raíssa não para, a fim de criar cooperativa de egressas e ampliar as façanhas da Herself, com a urgência da tatuagem que leva na pele com o lema Aqui e Agora.

Herself em números

  • 300 mil pessoas impactadas pelas ações para dignidade menstrual feitas pela Herself
  • 8.000 mulheres em privação de liberdade receberam produtos de proteção menstrual
  • 2.000 detentas aprenderam novo ofício e conseguiram reduzir a pena ao participarem do projeto
  • 20 toneladas de lixo deixaram de ser geradas por mulheres que utilizaram os produtos da iniciativa
  • 12 mil estudantes da rede pública de Porto Alegre receberão aulas de Dignidade Menstrual pela Herself

Conheça os demais finalistas na plataforma Folha Social+. Vote e, se possível, doe para esta iniciativa na Escolha do Leitor até 20 de outubro em folha.com/escolhadoleitor2023.

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