Descrição de chapéu Quilombos do Brasil

Dupla lidera luta de quilombos por direitos e memória na Bahia

Ananias Viana e Jucilene Jovelino, finalistas do Empreendedor Social na categoria Soluções que Inspiram, lideram organização que agrega 18 comunidades quilombolas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

O território quilombola Kaonge, em Cachoeira, na Bahia, é sede do Centro de Educação e Cultura Vale do Iguape (Cecvi) Renato Stockler/Folhapress

Cachoeira (BA)

Finalista

  • Organização Rede Cidadania Quilombola
  • Empreendedores Ananias Viana e Jucilene Jovelino
  • Site https://redecidadaniaquilombola.cecvi.org.br

A sombra que se projeta no chão é desenhada pela centenária mangueira de 20 m cujos troncos são ornados por bromélias que neles se engalfinham em simbiose.

A portentosa árvore, para Jucilene Jovelino e Ananias Viana, é extensão da morada, que consideram lugar sagrado. Foi ali que funcionou a primeira casa de farinha do quilombo Kaonge ("distante", em banto), no final do século 19.

Em torno dela, gerações se reuniram para prosear, transmitir conhecimentos e, em conexão com ancestrais, celebrar o alimento produzido. Jucilene e Ananias ainda apreciam o ambiente como reflexo de conquistas e desafios da Rede Cidadania Quilombola.

Jucilene Viana Jovelino e Ananias Viana criaram uma rede que forma núcleos produtivos de cultivo de ostra, artesanato e azeite de dendê - Renato Stockler/Folhapress

Estamos na zona rural Santiago do Iguape, às margens da reserva extrativista marinha da baía do Iguape, braço da baía de Todos-os-Santos, em Cachoeira, no Recôncavo Baiano. Os dois estão à frente de uma rede de 18 comunidades quilombolas do chamado Cecvi (Centro de Educação e Cultura Vale do Iguape).

Criado, em setembro de 2002, a rede apoia e desenvolver ações em defesa da população quilombola, como o reconhecimento e a certificação das comunidades, e do meio ambiente no entorno.

O objetivo é agregar, compartilhar e articular iniciativas que afetam a vida de cerca de 10.500 pessoas que são parte desse coletivo quilombola, um dos maiores do Brasil.

Mariscagem, apicultura, extrativismo, cultivo de ervas medicinais e turismo comunitário são atividades desenvolvidas pelos chamados núcleos produtivos, cuja maioria está sob o comando de mulheres.

"Aos cinco anos, ia para o roçado e a pesca ao lado de minha mãe. Aprendi com ela a deixar o pé da mandioca livre, e ela me ensinou a tirar sururu e ostra da baía", diz Ananias, 63.

Pai de três filhos que não moram no quilombo —assim como a namorada dele—, mas vivenciam a cultura dali com frequência, ele diz que antepassados dão a rota do futuro. "Queremos que jovens aprendam com os mais velhos, se formem nos centros e voltem para aplicar o que aprenderam."

É o que ocorre no programa de turismo criado por quilombolas na Rota da Liberdade, onde o visitante aprende a extrair o óleo do dendê, prova a culinária dali, feita com alimentos cultivados sem agrotóxico, e conhece plantas medicinais usadas pela benzedeira local.

Outro exemplo de atividade coletiva que agrega gerações quilombolas é a Festa da Ostra, que ocorre em outubro. O molusco é valioso para a economia do Recôncavo. Calcula-se que 65 famílias vivam do comércio de ostras na região.

A festa atrai todo o mundo. Nela, como no comércio entre as comunidades parceiras do Vale do Iguape, corre solto o sururu —no caso, a moeda social que leva o nome do mexilhão—, a qual circula tanto quanto a moeda nacional. Na prática, 1 sururu é igual a R$ 1.

A vantagem é que empréstimos em sururu são feitos sem juros, e o comércio aceita. Para Jucilene e Ananias, a moeda permite a mulheres retomar o domínio do próprio dinheiro.

Queremos que jovens aprendam com os mais velhos, se formem nos centros e voltem para aplicar o que aprenderam.

Ananias Viana

criador da Rede Cidadania Quilombola

A Festa da Ostra, mais do que apresentar o molusco em diferentes opções culinárias, enseja a criação de carta de demandas das comunidades, entregue às gestões públicas, da municipal à federal, além de atrair a comunidade acadêmica.

Para Ananias, é "uma forma política de mobilizar a população quilombola para o processo de luta, regularização fundiária, acesso a políticas públicas e articulação com movimentos". Diz ele: "O individualismo reinou desde a escravidão. O envolvimento das pessoas é fundamental para desenvolver".

Essa ação é constante, ao menos nos quilombos do Recôncavo, surgidos em locais que margeavam os centros açucareiro e fumageiro.

O Brasil tem 1,3 milhão de quilombolas, diz o IBGE, o que equivale a 0,65% dos habitantes do país (203,1 milhões). E a Bahia é quem abriga mais quilombolas: quase 397,1 mil.

E a Bahia, porém, foi palco do assassinato da líder do quilombo Pitanga dos Palmares, Bernadete Pacífico, em 17 de agosto, em Simões Filho, na região metropolitana de Salvador. Havia anos ela denunciava a violência contra pares e a tentativa de tomada das terras.

Estima-se que existam 827 quilombos no estado, sendo 688 reconhecidos pela Fundação Cultural Palmares. Mas nem todos têm processo no Incra.

Nos últimos 20 anos, 381 processos de regulação fundiária tramitam lá. Só duas comunidades foram regularizadas com títulos, na Grande Salvador e no norte do estado.

Cultivo de ostra é incentivado como meio de fortalecimento do território quilombola Kaonge, em Cachoeira, na Bahia - Renato Stockler/Folhapress

"O obstáculo que quilombos têm para regularizar a terra é a ausência de projeto que inclua quilombolas no desenvolvimento nacional. Isso reverbera em falta de orçamento e dificuldades burocráticas e jurídicas", diz Flávio Assiz, 45, coordenador do serviço de regularização de territórios quilombolas do Incra na Bahia.

A geração que vem aí, porém, indica que a defesa da terra quilombola terá novos contornos.

"As crianças aprendem coisas importantes, como adentrar a mata e como respeitar e compreender cultos religiosos de matrizes africanas no terreiro, que cultua os orixás Xangô e Iemanjá", diz Jucilene, 43, que é pedagoga e sobrinha de Ananias —moradores de quilombos, em geral, têm sempre um grau de parentesco entre eles.

Ela foi uma das primeiras dançarinas da Companhia de Dança Quilombola do Vale do Iguape, que, nos anos 2000, deu origem à Rede Cidadania Quilombola. Hoje, está à frente da escola São Cosme e São Damião, que atende a 40 crianças dos 2 aos 11 anos.

"Trabalhamos para que crianças e jovens aprendam a valorizar nossa identidade e resistência", diz Jucilene, que foi alfabetizada num banco de tira. "O material é sair da sala de aula e invadir a comunidade."

Para ela, o legado da aprendizagem quilombola é o respeito aos mais velhos, relação essa que conecta jovens com ancestrais, reverenciando a história de seu povo e a natureza.

Rede Cidadania Quilombola em números

  • 3 salários mínimos é a média de renda mensal de integrantes dos núcleos produtivos
  • 11 mil pessoas visitam os núcleos produtivos da Rede Cidadania Quilombola por ano
  • R$ 300 mil por ano é o que movimenta o turismo nas 18 comunidades quilombolas na Bacia do Vale do Iguape
  • A produção anual é de 60 mil dúzias de ostras, 600 mil litros de dendê e 500 mil litros de mel
  • 397 mil quilombolas aproximadamente vivem hoje, segundo o IBGE, no estado da Bahia

Conheça os demais finalistas na plataforma Folha Social+. Vote e, se possível, doe para esta iniciativa na Escolha do Leitor até 20 de outubro em folha.com/escolhadoleitor2023.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.