'Jovem senhora' do terceiro setor inova ao chegar aos 100 anos

Fundada por mulheres católicas nos anos 1920, Liga Solidária é liderada por executiva que controla orçamento de R$ 130 milhões para além do assistencialismo

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São Paulo

Nasceu numa roda de costura entre mães católicas, nos anos 1920, em São Paulo, uma organização que, cem anos depois, é referência no terceiro setor no país.

As mães eram aproximadamente 20 mulheres da elite paulistana que, sob batuta da Cúria Metropolitana, dedicavam seu tempo livre para desenvolver princípios cristãos, como prestar assistência a famílias vulneráveis por meio de doações.

Em 1923, com sede na rua Líbero Badaró, foi fundada a Liga das Senhoras Católicas —que em 2007 seria rebatizada Liga Solidária.

"Mudamos não por causa do ‘católicas’, mas por causa dos senhores", diz Rosalu Fladt Queiroz, 60, presidente voluntária da Liga Solidária.

Algumas das integrantes da Liga das Senhoras Católicas, entre elas sua primeira presidente, Guiomar Ataliba Penteado, em São Paulo - Divulgação

Ainda que os colaboradores da associação sejam de maioria católica (42% dos 1.300 profissionais), 26% não são mais mulheres. "Mas as presidentes sempre foram", completa a executiva, que atuou no agronegócio e na hotelaria e, há cinco anos, assumiu o cargo.

Se hoje a Liga tem como bases a educação e a cidadania, na década de 1920 a missão era socorrer os necessitados e apoiar outras mulheres, entre elas futuras mães e donas de casa.

Tanto que, além da costura de roupas e enxovais, uma de suas primeiras atividades, em 1924, foi a Escola Feminina de Serviços Domésticos, onde "moças da sociedade" e empregadas domésticas aprendiam o bê-a-bá do serviço do lar. Para mulheres que trabalhavam na região central, as senhoras abriram o Restaurante Feminino, no Viaduto do Chá, a preços populares.

"Era um espaço de convivência e troca de ideias entre mulheres de uma época em que só homens frequentavam restaurantes sozinhos", diz Rosalu.

Os pedidos de ajuda que chegavam pela Igreja Católica e pelas autoridades se somavam à boa vontade das senhoras, que encontravam meios de viabilizar projetos mesmo em uma sociedade em que eram os senhores os donos do dinheiro e das decisões.

Nas primeiras décadas, a Liga tinha sob sua gestão de ambulatório infantil a casa de repouso, entre outros espaços que acolhiam pessoas ou geravam renda para manter obras sociais.

Mas foi em uma chácara de 43 alqueires, na região de Cotia (SP), doada por uma devota de Nossa Senhora, em 1934, que a Liga estruturou seu pilar mais importante: o da educação.

O Educandário Dom Duarte, em homenagem ao arcebispo de São Paulo que incentivou a estruturação da entidade, começou como abrigo e chegou a receber 800 crianças abandonadas simultaneamente.

"Eu tinha uns 44 anos quando fui designado para ser diretor", lembra o padre Narciso Ferreira. "Fiquei morando lá de 1982 a 1986 e foram bonitos aqueles anos, tinha muito espaço, era uma criançada danada."

A Liga fortaleceu seu pilar educacional com a gestão de centros de educação infantil, cursos profissionalizantes e o colégio particular Santa Amália —e se tornou implementadora de políticas públicas com convênios a níveis municipal, estadual e federal.

Fachada do Educandário Dom Duarte, em São Paulo
Fachada do Educandário Dom Duarte, na região de Cotia, em São Paulo - Divulgação

Seu repertório centenário também legitimou a participação nos conselhos municipais e estaduais de Educação e Assistência Social. "Temos incidência política, pois os gestores públicos ficam quatro anos, nós estamos há cem", diz a atual presidente.

Após o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), nos anos 1990, o Educandário se torna centro de educação complementar à escola formal, com atividades culturais, esportivas, sociais e de apoio a famílias de 18 bairros do entorno.

E com a evolução do terceiro setor e da avaliação do impacto social, a Liga foi deixando de ser assistencialista, típica dos tempos em que foi fundada, para se tornar mais transformadora e dar protagonismo aos 24 mil beneficiados por ano.

"A gestão era feita com grande fé e boa vontade, mas a caridade vinha antes dos negócios, e a razão dos negócios é custear nossas obras sociais", afirma Rosalu, uma das mulheres que liderou o choque de gestão com métricas que trouxe do mercado.

O suporte da consultoria PwC foi um capítulo importante para essa virada de chave, lembra Carola Matarazzo, presidente da Liga entre 2012 e 2018, atualmente à frente do Movimento Bem Maior.

"Passamos um ano trabalhando com os consultores, olhando para a estrutura, o papel do conselho, a renovação da assembleia e desenhamos a muitas mãos um robusto modelo de governança", diz ela.

Carola recebeu o cargo de presidente de Xinha D’Orey Espírito Santo, "estudiosa da assistência social, com bagagem de inovação e conceitos disruptivos para época", segundo define.

tres mulheres em uma livraria
Dona Xinha, Carola Matarazzo e Rosalu Queiroz no lançamento do livro de cem anos da Liga Solidária - Daniel Cândido/Liga Solidária

Se de um lado a organização foi a primeira no Brasil a usar o relatório de sustentabilidade GRI - Global Reporting Initiative e fala tranquilamente em ESG, de outro ainda distribui cestas básicas.

"Moramos em um país que tem muitas dificuldades. Tem que ter uma organização social com uma ‘pessoinha’ que sobe o morro, leva a cesta, entra na casa das pessoas e fala para elas sobre seus direitos", diz Rosalu.

A maneira de arrecadar dinheiro também mudou bastante nesses cem anos. "Quando morria uma das senhoras, o patrimônio ficava para a Liga. Hoje em dia é mais difícil, sempre aparece um sobrinho", diz ela, que na infância vendia cartelas de bingo em eventos para ajudar a igreja.

Doações da alta sociedade foram fundamentais para manter as obras sociais, assim como bazares e desfiles beneficentes, mas em 2022 quase 90% da receita veio dos negócios filantrópicos (R$ 84,2 milhões) e dos convênios públicos (R$ 31,7 milhões). Doações somaram R$ 5,2 milhões.

O próximo capítulo da Liga é a construção de um complexo multiuso no bairro Raposo Tavares, distrito de baixa renda do Butantã (SP), e a expansão pelo país, por meio de seu eixo de inclusão produtiva, em parceria com o BNDES.

O programa Perifa Empreendedora deve chegar a estados do Norte e do Nordeste com capacitações e apoio a negócios em comunidades.

"A Liga Solidária fez uma área de empreendedorismo que busca soluções, que gera emprego e renda para mulheres", diz Luiza Helena Trajano, presidente do Conselho de Administração do Magazine Luiza. "E um dos pilares da Liga é a família, que dá uma base sustentável para empreender."

Para marcar os 100 anos, a entidade publicou um livro, fez um baile de gala e prevê em breve uma exposição e um documentário para celebrar o centenário dessa "jovem senhora".

"Se fosse possível voltar ao 10 de março de 1923, eu perguntaria às mulheres o que as motivou a fundar a Liga das Senhoras Católicas. Certamente uma das respostas seria o amor ao próximo", diz a presidente. "E a gente tem o dever moral de continuar essa história."

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