OEA
condena Brasil por violência doméstica
No último
dia 30, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da
OEA (Organização dos Estados Americanos) condenou
o Brasil por negligência e omissão quanto à
violência doméstica.
O caso que ilustrou
a atitude do país em relação aos direitos das
mulheres foi o da cearense Maria da Penha Maia Fernandes, que está
há 18 anos lutando pela punição de seu ex-marido.
Ela o acusa de tentar matá-la com um tiro e de tê-la
deixado paraplégica. O crime ocorreu em 1983, o acusado já
foi condenado, mas continua em liberdade.
A Comissão
recomendou que o país pague a Maria da Penha uma indenização
ainda não definida e exige que o Brasil cumpra de forma "rápida
e eficiente os procedimentos criminais" contra seu ex-marido,
o economista Marco Antônio Heredia Viveiros.
Leia mais
(Folha de S.Paulo)
OEA
condena Brasil por violência doméstica
A cearense Maria
da Penha Maia Fernandes, 56, passou os últimos 18 anos lutando,
sem sucesso, pela punição de seu ex-marido, a quem
acusa de tentar matá-la com um tiro e de tê-la deixado
paraplégica. Ele já foi condenado pelo crime, ocorrido
em 1983, mas continua em liberdade.
No último
dia 30, pela primeira vez, a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, sediada em Washington, condenou o Brasil por negligência
e omissão em relação à violência
doméstica. O caso que ilustrou a atitude do país em
relação aos direitos das mulheres foi o de Maria da
Penha.
A comissão
faz parte da Organização dos Estados Americanos (OEA),
composta pelos países das Américas e do Caribe. A
entidade não tem poder para obrigar os países a acatarem
suas decisões, mas usa canais diplomáticos para pressionar
pelo fim de eventuais violações aos direitos humanos.
"A condenação
do país é uma sanção de caráter
moral, que constrange internacionalmente o Estado violador",
afirma Silvia Pimentel, coordenadora, em São Paulo, do Comitê
Latino-Americano pela Defesa do Direito das Mulheres (Cladem).
Além
de recomendar que o país pague a Maria da Penha uma indenização
ainda não definida, a comissão exige que o Brasil
cumpra de forma "rápida e eficiente os procedimentos
criminais" contra seu ex-marido, o economista Marco Antônio
Heredia Viveiros.
O valor da indenização
será definido entre o governo brasileiro e o Centro pela
Justiça e o Direito Internacional (Cejil), representante
legal de Maria da Penha perante a OEA.
A decisão
de ressarci-la depende da vontade política do governo federal.
Mas, como a negociação entre as duas partes é
monitorada pela comissão, a pressão é forte.
O relatório
final afirma que o Estado brasileiro é omisso em relação
à violência doméstica: "Trata-se de uma
tolerância de todo o sistema que (...) alimenta a violência
contra a mulher (...), não havendo evidência socialmente
percebida da vontade do Estado, como representante da sociedade,
para punir esses atos".
"É
muito comum ouvirmos homens acusados de maltratar a mulher dizerem:
não tem juiz que me diga o que fazer dentro de casa",
afirma Graziela Acqua Viva Pavez, do Núcleo de Violência
e Justiça da Pontifícia Universidade de São
Paulo.
A comissão
acusa o país de ter descumprido dois tratados internacionais
dos quais é signatário: a Convenção
Americana de Direitos Humanos e a Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra Mulher,
conhecida como Convenção de Belém, aprovada
em 1993.
Os dois acordos
garantem às mulheres vítimas de violência doméstica
amplo direito de defesa. Os acusados de cometer o delito devem ser
alvo de investigação policial rigorosa. Comprovada
a culpa, precisam ser punidos.
Passados 18
anos do crime, Heredia Viveiros não foi efetivamente punido,
apesar de ter sido condenado pela Justiça do Ceará.
No dia 4 de
maio de 1991, oito anos depois de tentar matar a mulher, ele foi
sentenciado a 15 anos de prisão (dos quais só cumpriria
10, em razão de não ter antecedentes criminais).
Mas, alegando
erros processuais, a defesa conseguiu anular a sentença.
Ele foi condenado em um novo julgamento em 1996, mas recorreu e
está em liberdade. Em dois anos, o crime de Heredia Viveiros
prescreverá.
"O Brasil
não garantiu um processo justo contra o agressor em um prazo
razoável", afirma a sentença da comissão.
A denúncia
de Maria da Penha chegou à comissão em 1988, pelas
mãos do Cejil e do Cladem.
Durante os 13
anos em que o organismo da OEA analisou a denúncia, foram
enviadas três solicitações oficiais de esclarecimentos
ao governo brasileiro.
Depois de fazer
o primeiro pedido de informação, no dia 19 de outubro
de 1998, a comissão aguardou 250 dias por uma manifestação
da diplomacia brasileira antes de decidir dar prosseguimento ao
processo.
As repartições
federais nunca prestaram esclarecimento sobre o caso Maria da Penha.
Cumprindo as normas das convenções internacionais
de direitos humanos, a comissão acatou como verdadeira a
denúncia feita pelas duas organizações não-governamentais
e condenou o Brasil.
O Ministério
da Justiça recebeu o relatório da OEA na última
sexta-feira e informou que ainda não há posição
oficial sobre o caso. De acordo com o ministério, as recomendações
serão examinadas e o governo Fernando Henrique vai analisar
como poderá atendê-las.
A Folha não
conseguiu localizar o economista Heredia Viveiros, que se mudou
de Fortaleza, onde viveu com Maria da Penha.
Legislação
facilita impunidade
É comum
ouvir ativistas de movimentos de mulheres dizerem que a violência
doméstica é um fenômeno "perversamente
democrático". Está presente em famílias
de todas as classes sociais.
Só para
ter uma idéia, um dado do Banco Interamericano de Desenvolvimento
mostra que 1 em cada 5 trabalhadoras que faltam ao serviço
nos países americanos o fazem por terem sido vítimas
de algum tipo de violência.
No final da
década de 80, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística) pronunciou-se pela primeira vez sobre o tema,
atestando que 63% das vítimas de violência doméstica
eram mulheres.
Em 1998, uma
pesquisa da ONU com o Ministério da Saúde mostrou
que as delegacias da mulher, que existem em apenas 6% dos municípios,
registraram, em 1992, 205 mil agressões.
As pesquisadoras
Heleieth Saffiotti e Suely Souza Almeida, da PUC-SP (Pontifícia
Universidade Católica), analisaram boletins de ocorrência
de 1994 nas delegacias da mulher de 22 capitais: 81,5% das queixas
foram de lesão corporal dolosa, ou seja, pancada.
Desses processos, 70% foram arquivados. De cada 10 casos julgados,
houve 1 absolvição.
Em 1995 foi
aprovada a lei federal 9.009, para crimes considerados "de
menor potencial ofensivo", como acidentes leves de trânsito
e violência doméstica. Nesses casos, a pena mais aplicada
é o pagamento de uma cesta básica.
"Quando
um homem acostumado a agredir chega à Justiça e é
condenado a pagar R$ 50 ou R$ 60, sabe o que ele nos diz? Saiu barato",
diz a advogada Letícia Massula, do Comitê Latino-Americano
de Defesa da Mulher.
Acusado de ter
atirado nunca esteve preso
Dezoito anos
depois de se divorciar, a farmacêutica aposentada Maria da
Penha Maia Fernandes, 56, não lembra o dia exato em que se
casou e nem o cartório em que a cerimônia ocorreu.
"Apaguei da memória."
Maria da Penha
rasgou as fotos do ex-marido, o economista colombiano Marco Antônio
Heredia Viveiros, a quem acusa de ter tentado matá-la em
1983. Só sobrou o negativo de um "três por quatro",
guardado no fundo de uma pilha de documentos. "É para
um caso de necessidade".
O difícil
para ela é esquecer a violência a que foi submetida
e que a deixou paraplégica.
Segundo seu
relato, no dia 29 de maio de 1993, Heredia Viveiros a atingiu nas
costas com um tiro de espingarda calibre 12, enquanto ela dormia
na residência da família, em Fortaleza.
Heredia Viveiros
disse à polícia que a família havia sido vítima
de um assalto, mas a versão não se sustentou na delegacia
nem na Justiça. Ele foi condenado em dois julgamentos, mas
jamais passou um dia preso.
A primeira condenação,
a 15 anos de reclusão, ocorreu em 91. Os advogados dele recorreram
da decisão, alegando que a sentença foi baseada em
fatos que não constavam nos autos e que as perguntas que
o juiz faz aos sete cidadãos que compõe o júri
popular estavam mal formuladas.
O Tribunal de
Justiça do Ceará concordou que os quesitos não
foram bem formulados e determinou novo julgamento, que só
ocorreu em 96. "Quando eles levaram cinco anos para refazer
as perguntas, eu deixei de acreditar na Justiça", conta
Maria da Penha.
A defesa de
Heredia Viveiros entrou com recurso, que ainda está tramitando,
contra o segundo julgamento.
A falta de punição
efetiva fez com que a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos da OEA condenasse o Brasil, pela primeira vez, por um caso
de violência doméstica.
"Aqui no
Ceará processo não tramita, é empurrado",
diz Maria da Penha, que mantém cópias atualizadas
com o resumo da tramitação do processo.
A aposentada
relata que, em um determinado momento, foi obrigada a apelar para
uma amiga da secretária do desembargador que estava com a
papelada. "Fizemos um esforço danado, os funcionários
do gabinete me ajudaram e o processo andou."
O primeiro julgamento
de Heredia Viveiros foi adiado duas vezes, e o segundo, três.
Maria da Penha
acabou conhecendo o Cejil (Centro pela Justiça e o Direito
Internacional), a instituição que apresenta petições
junto à comissão da OEA, depois de haver publicado
um livro que conta sua história.
O casamento,
que durou seis anos, é muito mais uma história de
violência do que de amor. Maria da Penha e Heredia Viveiros
se conheceram na Universidade de São Paulo, em 75, quando
ambos faziam mestrado.
Com o nascimento
da primeira filha, um ano depois, o casal mudou-se para Fortaleza,
onde estava a família dela.
"Ele chegou
aqui com outra atitude, virou um homem grosseiro", diz ela.
Mas a situação tornou-se insuportável após
o nascimento da segunda filha. "Ele me proibia de atender as
meninas quando elas choravam de noite. Ele levantava da cama e batia
nas crianças até elas pararem de chorar", afirma.
Até hoje
Maria da Penha diz não saber exatamente o que motivou Heredia
Viveiros a tentar matá-la. "Eu suponho que ele não
queria a separação", diz ela. Após o nascimento
da terceira filha, ela optou pelo divórcio e sugeriu isso
a ele.
"Eu ainda
não acreditava que ele pudesse me fazer mal", diz ela.
Logo após o tiro, Penha chegou a acreditar que poderia realmente
ter sido vítima de um assalto.
Mas, pouco tempo
depois, ela conta que o então marido tentou eletrocutá-la,
obrigando-a a entrar num chuveiro elétrico com a fiação
totalmente comprometida. "Violência doméstica
é assim mesmo. Vai crescendo, crescendo", diz Maria
da Penha.
(Folha de S.Paulo)
|
|
|
Subir
![](../../images/sobe.gif) |
|
|