Maria Bonita foi primeira mulher cangaceira do bando de Lampião, mas não tinha privilégios

História dos cangaceiros mortos há 85 anos em Sergipe fascina até hoje porque se parece com ficção dos livros de aventura

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São Paulo

Vó Alcinda gostava de contar para todo mundo a história dos cangaceiros que invadiram sua cidade quando ela tinha 14 anos. "Sou de Mossoró, terra que expulsou Lampião", ela dizia. Alcinda era empregada em uma fazenda naquela época, e morria de medo de ser raptada pelo bando.

Quando ficou velhinha, Alcinda foi morar com a neta Adriana, e sua memória foi se esvaindo. Mas uma coisa Alcinda nunca esqueceu: ela era de Mossoró, terra que expulsou Lampião. Era essa a primeira frase que ela dizia se Adriana lhe apresentasse uma visita.

Maria Bonita e Lampião com a revista nacional 'A Noite Ilustrada' do Rio de Janeiro, em 1936 - Cortesia Ricardo Albuquerque/Sociedade do Cangaco/Divulgação

Mossoró é uma cidade no nordeste do Brasil, no Rio Grande do Norte, e que em 1927 foi atacada pelos cangaceiros liderados por Lampião —Maria Bonita se juntaria a eles depois, porque se casaria com o líder do bando. Cangaceiros eram pessoas que viviam perambulando pelo sertão no início do século passado e invadiam cidades para cometer uma série de violências.

Quem explica isso é Adriana, neta da vó Alcinda e autora do livro "Maria Bonita: Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço" (editora Objetiva), que fala sobre esse aspecto do Brasil. "Eles roubavam, saqueavam o comércio, pegavam animais dos fazendeiros. Eram homens fora da lei que não tinham pouso fixo e cometiam crimes, às vezes até assassinatos", diz Adriana.

Nesta semana completam-se 85 anos da morte de Maria Bonita e seu marido Lampião, os dois cangaceiros mais famosos do país. E mesmo depois de tanto tempo, Adriana acredita que ainda falamos sobre essa história porque ela é fantástica e parece saída da ficção.

Foto de Maria Bonita colorizada por Rubens Antonio. USO EXCLUSIVO DA ILUSTRADA
Foto de Maria Bonita colorizada por Rubens Antonio - Rubens Antonio

"Tem aventura, perseguição, personagens atraentes, roupas cheias de ouro muito vistosas e coloridas. Os cangaceiros viviam uma rotina de fugir da polícia e enfrentar o sol quente. Todos esse elementos parecem aqueles que gostamos de ler nos livros."

Nascida Maria Gomes de Oliveira, Maria Bonita foi pioneira: antes dela, não havia cangaceiras mulheres. "Ela se apaixonou pelo Lampião, que era o líder deles. E, quando isso acontece, Lampião decide que as mulheres também poderiam entrar para o bando", lembra Adriana.

A escritora conta que as mulheres que vieram depois de Maria Bonita viraram cangaceiras por motivos nada românticos. "Elas foram raptadas por aqueles homens que queriam ter uma mulher. E 'mulher' é forma de falar, porque elas eram quase sempre crianças. Havia algumas com 11 anos, que brincavam de boneca."

Lampião se chamava Virgulino Ferreira da Silva. E, ao contrário do que algumas pessoas pensam, ele não era um bom marido para Maria Bonita. Adriana diz que ele era muito violento, machista, e que achava que a última palavra tinha sempre que ser do homem.

"Acredito que ele e Maria Bonita se gostavam, que havia amor entre eles, mas não acho que ele era um homem legal", pensa a escritora.

"Muitos livros diziam que as cangaceiras eram quase feministas, que tinham entrado ali por vontade própria, que eram heroínas. Mas quando fiz a pesquisa percebi que muitas nem queriam ser cangaceiras, e no bando elas eram submetidas a muitas violências", revela.

Se uma cangaceira ficava grávida, por exemplo, os homens determinavam que a criança seria dada a alguém assim que nascesse —com o estilo de vida errante do bando, sem casa fixa, um bebê atrapalharia a ordem das coisas. Isso aconteceu com Maria Bonita. "Era muito sofrido pra elas", diz.

Outro hábito que não combinava com feminismo era o fato de que, no cangaço, mulheres obedeciam às ordens masculinas sem poder questioná-las. E eles tinham direito a ficar com quantas mulheres desejassem, enquanto elas só podiam namorar um único cangaceiro. Se uma mulher quisesse ir embora, era impedida.

A escritora Adriana Negreiros, autora do livro 'Maria Bonita: Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço' - 25.ago.2018-Bruno Santos/Folhapress

Maria Bonita e Lampião foram mortos em Sergipe, em 1938, pela Polícia Armada Oficial, hoje Polícia Federal. "Tem gente que pensa que os cangaceiros eram como se fossem Robin Hood, que roubavam dos ricos e distribuíam entre pobres. Mas isso é uma fantasia", ensina Adriana.

"Esses cangaceiros eram jovens que tinham nascido numa região muito pobre e esquecida do Brasil, numa época em que as possibilidades de vida melhor eram muito reduzidas e, para muitos deles, o cangaço era um jeito de ganhar a vida e ascender socialmente, ter dinheiro, bens etc."

Mais de um século depois, a história de Maria Bonita e Lampião segue viva, sendo contada para os mais novos e também em homenagens: o nome da cangaceira batiza comércios, produtos, e sua imagem é reproduzida inclusive em fantasias de Carnaval.

Adriana não pensa que isso seja um problema. "Quando nos vestimos de cangaceiro não estamos enaltecendo a violência, acho que estamos fazendo referência ao nordeste e à cultura regional. E é importante que a gente conheça a história e saiba quem foram esses personagens que inspiram nossas brincadeiras."

TODO MUNDO LÊ JUNTO

Texto com este selo é indicado para ser lido por responsáveis e educadores com a criança

Erramos: o texto foi alterado

Diferentemente do que afirmava o texto, Maria Bonita não participou do ataque a Mossoró. Ela se juntou ao bando apenas dois anos depois. A informação foi corrigida.

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