Descrição de chapéu literatura

Gabriel García Márquez 'mentia sem parar' e fazia adultos acreditarem nele

Tradutor e amigo Eric Nepomuceno ajuda a recontar quem foi o colombiano autor de histórias fantásticas, morto há dez anos

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São Paulo

Uma casa com vontade própria, que se comunica e até mesmo ajuda seus habitantes, é algo em que as crianças não têm dificuldade de acreditar —se ela aparece numa história, todo mundo acha natural. É assim no filme "Encanto", da Disney, com a Casita da família Madrigal e seus poderes mágicos.

Cena da animação "Encanto", da Disney
Cena do filme 'Encanto', da Disney, inspirado no universo de Gabriel García Márquez - Divulgação

Adultos, por sua vez, parecem ter mais dificuldade em aceitar esse tipo de coisa. Alguns acham bobagem, outros questionam o porquê daquilo, e assim os livros e filmes que usam a fantasia arriscam ver gente grande torcendo o nariz.

Mas houve um escritor que soube fazer isso em sua obra e ganhou muitos prêmios e muitos fãs por causa das coisas que criou. O nome dele é Gabriel García Márquez, nascido em 6 de março de 1927 em Aracataca, na Colômbia, e morto em 17 de abril de 2014, quase dez anos atrás.

O escritor Gabriel García Márquez, em frente à sua casa, no México - REUTERS

Em muitos dos livros de Gabo, como ele era chamado, acontecem coisas malucas. Como uma cama que sai voando pela janela, por exemplo, em "Cem Anos de Solidão" (1967). Não é coincidência que "Encanto" se passe na Colômbia e tenha "uma cara" meio de García Márquez —ele serviu de inspiração para os criadores do filme.

Mas como será que ele fez para escrever tudo isso e os adultos não só não estranharem, como também gostarem?

"Ele acreditava nas mentiras. A vida é toda feita de absurdos. A história é muitas vezes absurda", diz Eric Nepomuceno, jornalista, escritor e tradutor de autores latino-americanos, em especial do próprio García Márquez.

Eric e Gabo eram amigos desde 1978. "Nos conhecemos escrevendo, cada um por um lado, textos sobre o golpe militar do general Augusto Pinochet, que em 1973 liquidou a democracia no Chile e levou à morte o presidente democrático Salvador Allende", conta.

"Nos conhecemos então pessoalmente, e não nos desgrudamos nunca mais. Foram décadas de amizade fraterna", lembra Eric, para quem a parte mais divertida e gostosa de ser amigo de Gabo era… "tudo". "O humor, a solidariedade, a visão de vida... Tudo, tudo."

Com o aniversário de uma década da morte de García Márquez, muitas homenagens serão vistas pelo mundo. Ele, que em 1982 recebeu o Prêmio Nobel de Literatura pelo conjunto de tudo que escreveu, segue sendo importante até hoje. Eric explica o porquê.

"Primeiro, porque ele escrevia especialmente bem. Segundo, tinha um estilo próprio, muito pessoal. Terceiro, criava histórias que pareciam absurdas, mas num clima de absoluta credibilidade", enumera.

"Ele mentia sem parar, mas fazia a gente acreditar em tudo. Muitas vezes, termino de ler alguma coisa que ele escreveu, fecho os olhos e fico lembrando a voz do meu avô José Augusto, pai do meu pai, contando as histórias dele, todas de mentira, mas que me convenciam como se tivessem acontecido de verdade."

Muitas vezes, Gabo é descrito como um dos inventores de um movimento na literatura chamado realismo mágico, que é onde se encaixam as tais coisas malucas que acontecem em suas obras. Mas Eric acha que esse nome não é ideal, e diz que Gabo também não era muito fã dele.

"Porque não tem nada de mágico, de inventado. A nossa realidade é torta, é cheia de coisas que fomos ensinados a não ver, a ignorar, achar estranho. A história oficial esconde, muitíssimas vezes, a história real. Ou alguém acredita que dom Pedro estava cavalgando, todo elegante, quando resolveu gritar 'Independência ou morte!'? Pergunte a verdade ao seu professor de história. Você vai levar um susto e morrer de rir", diz.

Para Eric, Gabo tinha a capacidade de escrever bem e de colocar afeto em tudo, além de uma visão carinhosa da vida. "E sempre uma visão muito, muito poética, mesmo quando descreve sustos e medos."

Entre os livros de García Márquez que Eric traduziu está o mais recente, "Em Agosto nos Vemos", publicado já depois de sua morte, em abril de 2024. Tornar esta última história pública foi uma decisão da família do escritor.

"Eu nunca fazia consultas enquanto traduzia. Ele sempre disse que eu, por ser escritor, não podia fazer a outro escritor perguntas de tradutor. Quando eu terminava, falávamos ao vivo, quando nos encontrávamos, ou por telefone", diz.

Será que o trabalho fez aumentar as saudades que Eric já sentia do amigo? "Tremendamente", responde.

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