Antonio Prata
Embarque
Agora, numa terça de manhã, assim, do nada, ela o encontra na sala de embarque do aeroporto
"Rodrigo?!", soltou a mulher, uns cinco metros adiante, olhando pra mim. Confuso, parei de empurrar o carrinho de bagagem, olhei pra trás, olhei em volta, mas, antes que eu terminasse a busca, ela insistiu; "Rodrigo!" --agora já não mais uma pergunta, e sim uma afirmação. Um vento frio soprou no meu estômago: senti como se tivesse cruzado uma aduana invisível que separa o embarque de Congonhas de um livro do Kafka.
Há, sem dúvida, aspectos meus que desconheço; há, talvez, rincões de minh'alma que nem com cinco décadas de análise conseguirei acessar, mas, depois de 37 anos sobre a Terra, algo posso afirmar sobre mim, sem titubear: eu não me chamo Rodrigo. A mulher, porém, não pensava assim --e, a julgar pela voz trêmula, pela boca cerrada e pela sobrancelha franzida, isso não era muito promissor.
Ela aparentava uns 40, 50 anos, tinha um cabelo preto, farto e olhos espantados, circundados por rugas profundas --vincos que, suspeitei, não deviam ser totalmente desvinculados do tal Rodrigo. Havia dor e susto ali, mas havia afeto também. Pensei menos num estelionatário que tivesse dando um golpe na venda de um carro do que num namoro de fim catastrófico. Quem sabe o Rodrigo tinha prometido casar, ter filhos, passarem a aposentadoria juntos num sítio e, um belo dia, escafedeu-se? Agora, numa terça de manhã, assim, do nada, ela o encontra --ou acha que o encontra-- na sala de embarque do aeroporto. Dava mesmo pra entender o choque --caso eu fosse o Rodrigo.
Como eu não era --e continuo não sendo--, resolvi desfazer a confusão e fui caminhando em direção à mulher. Quem sabe eu nem precisasse falar nada? Quem sabe bastaria ela me ver de perto pra sorrir, envergonhada, "Nossa, achei que...", "Tranquilo, acontece". Eu seguiria andando, atravessaria o corredor que separa o Franz Kafka do Franz Café, compraria um pão de queijo e leria o meu jornal. A um metro da mulher, no entanto: "Rodrigo...".
Se o primeiro "Rodrigo?!" foi um "Meu Deus, é você?!" --e me deixou confuso--, se o segundo "Rodrigo!" foi um "Sim, é você!" --e me deixou com medo--, o terceiro "Rodrigo..." tava mais pra um "Você, hein?" --que me encheu de culpa. O Rodrigo sem dúvida havia pisado na bola, grandão, com aquela mulher, a havia feito sofrer, chorar, espernear e esperar noites a fio: agora estava ali --ou, pelo menos, era o que ela pensava-- para receber o troco.
Fui chegando perto, já pegando o RG para o caso de precisar desfazer, oficialmente, o mal-entendido, mas nem consegui sacar o documento: num salto, ela veio pra cima de mim. Esperei unhadas, mordidas, uma facada talvez. Em vez disso, me deu um abraço e começou a chorar: "Rodrigo! Ah, Rodrigo!". Fiquei ali por um tempo, imóvel e perplexo, sentindo o cheiro, o calor e os tremeliques daquela estranha. Então ela se afastou, olhou pro chão, olhou pra mim e disse, baixinho: "Rodrigo, você me perdoa?". Olhei no fundo dos olhos dela e acabei, finalmente, com aquele absurdo: "Perdoo". Aos poucos, os soluços foram diminuindo, ela enxugou as lágrimas, disse "Brigada" e, atendendo à última chamada para o embarque do voo 1047, pra Maringá, sumiu pelo portão nove.