Tati Bernardi
Don Draper vai me abandonar
'Mad Men' consegue ir no esôfago dos personagens sem jamais cair no piegas e no esperado
Estou degustando o fim de "Mad Men" como se fosse o último pedaço de "pain perdu" do planeta e eu, uma desertora da sociedade, fadada a comer folha de bananeira pro resto da vida. Matthew Weiner, o criador da série, parece ter roubado minha história. Também comecei como secretária de criação antes de me tornar redatora, levei muita cantada machista (algumas eu gostava) e me apaixonei por rapazes que sabiam fazer piadas maldosas e ostentar em jantares com ostras (o alimento e as estagiárias, incluindo eu). Nunca vou saber se a curva dramática de Peggy Olson (de sonsa proletária meiga a esfomeada obsessiva insegura) me soa tão perfeita por ser tão bem escrita ou por parecer tanto comigo.
Tenho uma infinidade de amigos estudando técnicas de roteiro, fazendo workshops "liberte sua criatividade" e "aprenda a escrever", decorando novos nomes para coisas tão básicas e óbvias como "ponto de virada de uma trama". Ouvi dizer que tem professor que chama ponto de virada de Samanta só pra dizer que inventou "um método Samanta para ensinar ponto de virada". Não acredito em nada disso. Como diria o He-Man ao final do desenho, vamos ver o que aprendemos hoje apenas ligando o Now de nosso confortável sofá? "Mad Men" consegue ir no esôfago dos personagens sem jamais cair no piegas e no esperado.
Ted prometeu largar tudo pra ficar com Peggy, mas na hora H amarelou. Essa é uma premissa que poderia estar no computador de qualquer roteirista (e na vida de qualquer ser humano), mas... seu desenrolar nos traz informações muito mais profundas e tridimensionais que o dado "uma mulher magoada": ela já ocupa um cargo importante, mas é extremamente insegura (cabeça atormentada é um presentinho de Deus que nenhum curso, por mais caro que seja, vai te dar!); ela é uma mulher moderna a fim de sexo proibido delícia e ao mesmo tempo uma mocinha romântica que se apaixona e quer uma família (sim, porque no mundo real somos um pouco de tudo); Ted preferiu os filhos, coisa que certamente a atormenta porque ela abandonou o dela; ela está com ódio mortal de Don porque, no fundo, é ele quem ela deseja; mesmo sabendo "de onde veio" e sendo quase sempre fofa e do bem, ela pode ser bem rude com seus subalternos (ah, que falta fazem personagens menos maniqueístas em nossas novelas!). Essas coisas todas são ditas em diálogos altamente explicativos e repetitivos, pra pessoinha em casa que se distraiu pegando um suquinho? Não. Ao final, ela se vinga e ele se arrepende e eles são felizes? Não. Com isso ela aprende que não vale a pena transar com homens casados? Se Deus quiser: NÃO.
São escritores maravilhosamente sádicos que descartam, assim como Don Draper, vários romances que pareciam relevantes e nos atropelam com intrigas agudas para só solucioná-las muitos episódios à frente (ou jamais, pois assim é a vida). Feitos os devidos elogios à estrutura, já podemos babar um pouco nos diálogos. O chefe de Don, Roger Sterling, bebe demais e dá em cima da Betty, primeira mulher de Don. No dia seguinte, fala sobre como "estaciona seu carro em garagens erradas quando está alcoolizado". Sem nenhum "tiros e correrias", desfile de clichês ou "explicação verbal mala da cena que já estamos vendo", Don entende o pedido de desculpas e "semi" sorri. Em uma cena extremamente dramática, sabemos que o nome real de Don Draper, Dick, foi uma homenagem à sua mãe que, segundos antes de morrer por causa do parto, disse que cortaria o "dick" do pai do menino por engravidá-la. O nome daquele ser magnânimo é PAU e a cena, meus amigos, consegue ser triste. He-Man vibra nessa hora! Posso ouvi-lo dizendo, sobretudo pra mim: "É assim que se escreve, crianças!".