São Paulo, domingo, 26 de dezembro de 1999




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Mágica e diversão no palco da fé | Galeria

Mágica e diversão no palco da fé

EVENTOS DE MASSA SE TRANSFORMAM EM ‘PRONTO-SOCORRO’ DA ALMA E OFERTAM ALÍVIO PARA OS PROBLEMAS DE SEUS FIÉIS

FERNANDO DE BARROS E SILVA
da Reportagem Local

Missas a céu aberto que lembram os tempos em que o rock mobilizava centenas de milhares de “fiéis”; cultos em estádios que levam mais torcedores da fé do que o Corinthians em final de campeonato. A religião este ano foi responsável pelos maiores eventos de massa no Brasil. Eventos que vêm misturando, como o futebol e o rock, uma boa dose de entretenimento a uma carga de experiência mística e arcaicizante.
Que a fé passa por um momento de transformação parece inegável. Mas qual é ela exatamente? E quem são esses fiéis que se aglomeram em megaespetáculos dos quais são coadjuvantes? O que esperam ou obtêm da religião assim vivida? Que religiosidade é essa que vai se desenhando à véspera do ano 2000? Não há respostas conclusivas para tais questões, mas pode-se elencar de saída três ordens de fatores que ajudam a explicar o fenômeno em curso do “reencantamento” brasileiro.
O primeiro deles é o declínio do catolicismo tradicional que, embora ainda seja majoritário e hegemônico, vem perdendo espaço há algumas décadas devido ao anacronismo de seus dogmas e ao ritmo por assim dizer paquidérmico com que a Igreja vem respondendo às mudanças comportamentais de um mundo que passa por muitas transformações.
Em segundo lugar, a nova religiosidade parece se beneficiar do perfil altamente excludente da modernização do país. Há uma massa de deserdados do progresso cuja identidade subjetiva e possibilidade de reconhecimento social passaram a depender da experiência religiosa, ou a se escorar nela como tábua de salvação.
Há, por fim, sobretudo em relação à parcela da população mais ou menos integrada à modernidade e a seus benefícios, uma interferência paradoxal da ciência sobre a religiosidade. Por um lado, a ciência destruiu parte das crenças religiosas. Por outro, devido a suas próprias limitações e à irracionalidade de seus resultados (criou condições para destruir o planeta e não levou à erradicação da miséria), deixou como saldo um enorme vazio de sentido, um vácuo para o ressurgimento de formas religiosas místicas, quando não francamente regressivas.
Parece ser na pista aberta por essa conjunção de fatores que correm lado a lado os dois maiores fenômenos da nova fé brasileira: a neopentecostal Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), do bispo Edir Macedo, dono da Record, e a neocatólica Renovação Carismática Católica (RCC), cujo astro é o padre pop Marcelo Rossi.
O componente espetacular dessas duas igrejas, que disputam espaço na TV, se valem de estratégias de marketing sofisticadas e usam de um proselitismo agressivo para arrebanhar novos fiéis, é o primeiro traço que as aproxima. Está longe de ser o único. Organizadas segundo critérios empresariais, com técnicas de aliciamento próprias da economia de mercado, tanto a Iurd como a RCC são religiões “mágicas”, emocionais, cujos cultos são baseados no transe coletivo, em testemunhos de conversão e na glossolalia. Religiões que crêem em milagres, revelações, curas divinas e na interferência de Deus no cotidiano.
Há, portanto, uma espécie de paradoxo entre a racionalidade administrativa dessas religiões emergentes e o arcaísmo de suas mensagens e procedimentos. Ultramodernas, são também desmodernizantes. Isso as afasta tanto do protestantismo histórico como do catolicismo tradicional.
Como diz o sociólogo Émile Léonard, referindo-se ao pentecostalismo, nele a Bíblia tem um lugar diminuído, e “os hábitos gerais levam menos a meditar sobre uma revelação escrita do que a dar uma ‘telefonada para Deus’ e a esperar uma resposta que não esteja mais ligada a uma mediação fora de moda, a do papel impresso”. Com mais razão se poderia estender o raciocínio à Universal e à Renovação Carismática. Ambas ligaram Deus na tomada da TV. Mais do que isso, baniram a mediação, não só do papel impresso, mas qualquer uma, entre a demanda do fiel e a resposta, ou pronta-entrega, divina.

TERAPIA PARA ALÍVIO IMEDIATO
Um dos motivos de seu crescimento é justamente esse: o fato de funcionarem como “prontos-socorros da alma”, espaços terapêuticos que prometem aos fiéis alívio imediato _das drogas, do álcool, de doenças, de dramas familiares ou relacionados à pobreza.
Por isso mesmo tais religiões são, para seus adeptos, tanto veículos para a conquista de uma nova identidade subjetiva como um instrumento de ascensão social. Ter um encontro com Cristo, diz o sociólogo Ricardo Mariano (autor de “Neopentecostais: Sociologia do Novo Pentecostalismo no Brasil”), corresponde “a gozar uma vida próspera e feliz, ou à certeza de poder contar com a intervenção divina em qualquer circunstância, mesmo que seja para satisfazer ambições materiais”.
Explícita no caso da Iurd, a Teologia da Prosperidade, de origem norte-americana, não é estranha à RCC. Nascida nos EUA em 1967, a RCC cresceu no Brasil tanto em reação às Comunidades Eclesiais de Base, o ramo esquerdista da Igreja Católica, como contra o avanço do neopentecostalismo, do qual se aproxima muito. Há porém diferenças entre ambas. A obediência ao papa, o culto à Virgem Maria e a reza do terço afastam a RCC da Iurd, que, em contrapartida, dá ênfase ao dízimo e ao enfrentamento com o diabo.
Diferenças à parte, carismáticos e neopentecostais são adeptos da “religiosidade de resultados”. Padre Marcelo Rossi atrelou a fé ao repertório e às práticas da indústria cultural. Concorre hoje com os reis da axé music. A Universal, por sua vez, vem abrindo mão “de preceitos, valores, tradições e tabus considerados anacrônicos e impopulares”, como diz Mariano.
O afrouxamento moral e a adaptação ao mundo do consumo são traços muito distantes do protestantismo descrito pelo sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) em seu “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” (1905). A discussão ganhou destaque depois que o sociólogo David Martin defendeu, em “Tongues of Fire: the Explosion of Protestantism in Latin America” (1990), que o neopentecostalismo representaria um impulso para o capitalismo na América do Sul, assim como a Reforma teria favorecido a acumulação capitalista.
O paralelo parece apressado. Weber sempre tomou o cuidado de salientar que a relação entre a cultura e a economia era mais complexa e sinuosa do que poderia parecer. Além disso, a ética puritana do protestantismo era secularizante e ascética, incutindo nos fiéis o valor do trabalho metódico e da renúncia aos prazeres mundanos. O neopentecostalismo funciona em outro registro: “Em vez da ética do trabalho diligente e consumo frugal, temos a teologia da prosperidade e seu ideal de enriquecimento rápido por meios rituais”, diz Mariano.
O impacto da onda neoprotestante e da reação católica conservadora sobre a religiosidade brasileira é um problema em aberto. Mas é quase inevitável a sensação de que a fé popular no Brasil, desde sempre mística e arcaica, encontra novo fôlego para se exprimir no momento em que se torna mercadoria e passa a rezar a cartilha do individualismo contemporâneo, funcionando como um “salve-se quem puder”, a última esperança dos desesperançados.


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