São Paulo, domingo, 26 de dezembro de 1999




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Religião não é mais herança, mas opção

A CRENÇA DEIXOU DE SER UMA IMPOSIÇÃO DOS PAIS E SE TORNOU UMA ESCOLHA PESSOAL. A CONVERSÃO NÃO TRAZ DRAMAS FAMILIARES; O CONSUMIDOR RELIGIOSO É UM SER POUCO FIEL, QUE DISPÕE DE MUITAS OPÇÕES NUM MERCADO ESPIRITUAL ALTAMENTE COMPETITIVO

REGINALDO PRANDI
Especial para a Folha

A religião que se professa hoje já não é aquela na qual se nasce, mas a que se escolhe. A religião que alguém elege para si hoje, escolhida de uma pluralidade em permanente expansão, também não é necessariamente mais a que seguirá amanhã.
O religioso é agora um ser pouco fiel. Mais de um quarto da população adulta da região metropolitana de São Paulo professa hoje religião diferente daquela em que nasceu, são convertidos, muitos tendo experimentado sucessivas opções (1).
Houve tempo em que a mudança de religião representava uma ruptura social e cultural, além de ruptura com a própria biografia, com adesão a novos valores, mudança de visão de mundo, adoção de novos modelos de conduta etc. A conversão era um drama, pessoal e familiar, representava uma mudança drástica de vida. O que significa hoje mudar de religião, quando a mudança religiosa parece não comover ninguém, como se mudar de religião fosse já um direito líquido e certo daquele que se transformou numa espécie de consumidor, consumidor religioso, como já se chamou esse converso (2)?
As mais díspares religiões surgem nas biografias dos adeptos como alternativas que se pode pôr de lado facilmente, que se pode abandonar a uma mínima decepção. São inesgotáveis as possibilidades de opção, intensa a competição entre elas, fraca sua capacidade de dar a última palavra. A religião de hoje é a religião da mudança rápida, da lealdade pequena, do compromisso descartável.
Mas não somente o crente muda de um credo para outro, desta para aquela igreja. As religiões mudam também e mudam muito rapidamente, visando alcançar clientela anteriormente fora do alcance de sua mensagem. É verdade que a religião muda a reboque da sociedade, adaptando-se a transformações sociais e culturais, num esforço para não perder o trem da história, como tem ocorrido especialmente com a Igreja Católica (3).
Hoje provavelmente muitas das mudanças contemplam não especificamente a sociedade em transformação, mas o conjunto das diferentes religiões que se oferecem como alternativas sacrais, o que significa que a religião muda paramelhor competir com as outras em termos da adesão de fiéis e não em razão de se pôr numa posição axiológica mais compatível com os avanços da sociedade.
Mudanças internas da religião não significam necessariamente um perigo para a sua sobrevivência. Ao contrário, quem não muda não sobrevive. Interesses vários podem ser exercitados com maior liberdade, numa competição interna cujo sucesso se mede não pelos alcances teológicos possíveis, mas pela adesão de crentes.
A própria carreira sacerdotal se vê compelida a incorporar novas habilidades, como aquelas até bem pouco mais apropriadas aos homens de negócios e mais marcadamente atributivas de artistas, ginastas e estrelas de TV. Mesmo em religiões severamente consolidadas surgem novos horizontes de mobilidade social baseada na capacidade pessoal de inovação e empreendimento do sacerdote.
Nas grandes igrejas, muitas das quais atuando como conglomerados empresariais, assim como nas religiões em que a unidade administrativa e sacerdotal é fraca ou inexistente, o sucesso do líder religioso depende da sua capacidade de atrair devotos e clientes e gerar renda necessária à expansão daquela denominação.
Experimentar novos sentimentos e formas da religião não significa necessariamente mudar de religião. Não é preciso sair da religião de origem para provar da mudança religiosa. Um católico nos seus cinqüenta e poucos anos pode ter conhecido, seguindo sempre católico, muitas formas assumidas pelo catolicismo em meio século. Nosso católico cinqüentão foi criado num catolicismo que rezava em latim, com o padre de costas para a assembléia, que ouvia os pecados em confissão auricular, obrigava ao jejum antes da comunhão e proibia o consumo de carne às sextas-feiras e na quaresma, cobria a cabeça das mulheres no interior dos templos, povoava os altares com imagens de santos, separava homens e mulheres nas igrejas, homens de um lado, mulheres do outro.
Com o concílio Vaticano 2º, aberto em Roma por João 23, em 1962, e encerrado por Paulo 6º, em 1965, com o objetivo de promover a atualização da igreja frente ao mundo moderno, muitas mudanças foram introduzidas no catolicismo como resultado da onda que alavancava a igreja para uma nova posição ritual e doutrinária, então interessada em estabelecer uma nova relação com a sociedade, fazendo-se mais presente nas questões do dia-a-dia e nas injunções sociais e políticas, uma vez que buscava exatamente, através do aggiornamento, recuperar a importância perdida no curso da secularização.
Entre essas modificações podemos citar: a instituição da missa rezada nas línguas vernáculas, com o padre de frente para a assembléia; a abolição do púlpito, para falar do altar; a adoção da confissão coletiva e da comunhão em que a hóstia é levada à boca pelas mãos do próprio devoto, podendo o leigo ajudar a administrar a eucaristia, assim como outros sacramentos; o surgimento dos padres vestidos a paisana, abandonando-se a batina; a não mais separação de homens e mulheres na igreja, não cobrindo-se mais de véu a cabeça das mulheres; a perda de importância das procissõese outros ritos; o abandono definitivo do milagre.
Tudo isso veio compor uma religião muito diferente, especialmente desencantada, nem sempre palatável ao gosto dos católicos, sobretudo os mais velhos, tanto que algumas inovações duraram pouco, tendo as imagens dos santos rapidamente deixado seu exílio nas sacristias para ocupar de novo seus postos nos altares. Mas as principais inovações implementadas consolidaram-se de tal modo que dificilmente um católico hoje com 20 ou 30 anos de idade reconheceria como sua a religião das paróquias do período imediatamente pré-conciliar.

ENFRENTAMENTO DE RELIGIÕES MUDA CATOLICISMO
Esta religião não estava mais sozinha no Brasil, tendo que se enfrentar, sobretudo a partir dos anos 50, com uma enormidade de concorrentes agrupados nos ramos pentecostais e afro-brasileiros, cujas denominações e variantes nunca pararam de crescer. O catolicismo mudou para não perder terreno, embora, pelo menos nessa etapa, tenha perdido muitos de seus seguidores exatamente por mudar, deixando o católico frente a uma religião nova, na qual não é capaz de se reconhecer, impelido a novas escolhas.
A partir dessas mudanças, que visavam recuperar para o catolicismo a condição de principal interlocutor das mudanças sociais, nasce na América Latina o catolicismo da Teologia da Libertação e das Comunidades Eclesiais de Base, para o qual ser cristão passou a significar ser capaz de agir militantemente na sociedade com o fim de a tornar socialmente mais justa. O bom católico é aquele que se preocupa com as condições sociais de vida dos oprimidos, é aquele que se organiza e luta em nome de Deus para suprimir os mecanismos sociais de exploração, é aquele que usa a palavra de Deus para mudar o mundo através da ação política. A assembléia da missa transmuta-se na assembléia dos cidadãos, os ritos e os sacramentos reconstituem-se em exercícios de conscientização coletiva, a religião se politiza e se desinteressa das pequenas e subjetivas causas dos indivíduos. A igreja católica se dividiu em progressistas e conservadores, num corte emblematicamente político.
Outras inovações importantes marcariam o catolicismo na segunda metade do século 20, mudando completamente sua feição no Brasil e oferecendo nova possibilidade de escolha para muitos descontentes. Com a Renovação Carismática, o catolicismo baniu as preocupações de natureza política, recuperou a importância do indivíduo, revalorizou os sacramentos rituais, a oração e o culto mariano, instalou um culto fortemente marcado pela expansão das emoções, revigorou o milagre, recuperou a magia que processa a cura religiosa, adotou a manipulação dos efeitos mágicos e sentimentais dos dons do Espírito Santo, centrais na doutrina e no rito dos concorrentes evangélicos pentecostais, assumindo inclusive o transe tão constitutivo do kardecismo e das religiões afro-brasileiras e fundamental entre os pentecostais na exteriorização do dom das línguas.
Os grupos carismáticos de oração repovoaram as igrejas, motivando católicos desinteressados dos catolicismos sociais e trazendo de volta muitos que tinham saído da religião de origem para experimentar outras modalidades religiosas (4). Em pouco tempo os reservados grupos de oração carismáticos foram ganhando espaços mais amplos e se fazendo mais visíveis.
O carismatismo despontou explosivamente na mídia eletrônica através do carisma do padre-espetáculo. Se a Igreja Católica havia recuperado com a renovação carismática muito do espaço perdido, o poder dos sacerdotes havia sido inequivocamente deslocado pela autoridade conquistada pelas lideranças leigas. O movimento podia crescer mesmo onde não encontrava apoio do pároco.
Mas, antes do apagar das luzes do século 20, o catolicismo carismático sofreu nova inflexão, com o surgimento de sacerdotes capazes de transformar a celebração da missa em grandes espetáculos de massa, com farta exploração das emoções orientadas pelo canto, dança e mesmo ginástica, numa coreografia religiosa que dá relevo especial ao corpo, num contexto ideológico já suficientemente focado no indivíduo e nas questões pessoais. A música católica alcançou as paradas de sucesso e o padre-espetáculo virou estrela de programas de TV.
Nesse movimento pode-se imaginar o leigo voltando a ocupar seu lugar subalterno, retomando a igreja o controle da religião nas mãos de seus profissionais, os padres, cujo modelo agora é outro e cuja formação implica maior dedicação ao corpo e suas habilidades de expressão, como o canto e dança, e menor necessidade de aprimoramento filosófico, teológico, lingüístico e mesmo cultural, apanágio da formação dos sacerdotes católicos até bem pouco.
A introdução da nova maneira católica de promover a expansão das emoções e fruição coletiva de sensações, sob a regência do padre que arrebata multidões nas grandes missas-espetáculo, torna ocioso o uso dos dons de transe, livrando o catolicismo do constrangedor empréstimo glossolálico tomado do pentecostalismo pelo movimento carismático como mecanismo de celebração emocional do sagrado. Talvez sem a necessidade de apelar ao dom sobrenatural de falar em línguas desconhecidas, o catolicismo se sinta mais catolicismo.

Continua


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