38ª Mostra
Queridinhas do Almodóvar
Retrospectiva de homenageado da Mostra reúne 15 filmes iconoclastas que exaltam o universo feminino
Se existe marca evidente do fim do franquismo na Espanha, esta é, sem dúvida, o cinema de Pedro Almodóvar, homenageado nesta Mostra.
O generalíssimo, "tirano de Espanha pela graça de Deus", morreu no fim de 1975. Em 1980, Almodóvar saía-se com seu primeiro longa, "Pepi, Luci, Bom e outras Garotas de Montão", verdadeiro manifesto anarquista, em que, só para começar, Pepi, após ser ultrajada e violentada por um policial, decide seduzir Luci, a mulher do tira.
Existe ali de maconha a masoquismo, passando por estupro, neste filme em 16mm, feito em condições precárias, e que pode ser visto quase como um ensaio daquilo que o cineasta faria a seguir.
Desde 1975, aliás, ele já se dedicava ao cinema, fazendo curtas. É com "Pepi, Luci, Bom...", no entanto, que a marca iconoclasta começa a se definir. "Maus Hábitos" (1983), por exemplo, colocará em questão diretamente a Igreja Católica em suas relações com o mundo.
Se o espírito anticlerical que Almodóvar cultivou (a exemplo de Buñuel, seu ilustre predecessor) é evocado, a homossexualidade tampouco deixa de ser um assunto presente desde seus primeiros trabalhos. Mais ostensivamente em "A Lei do Desejo" (1987), de forma mais cerebral em "Matador" (1986), talvez seu primeiro grande filme.
E se desde o início as mulheres são uma presença constante em seu cinema (e em sua vida, já que cresceu num mundo feminino), elas serão o motivo de seu primeiro grande sucesso mundial, "Mulheres à Beira de um Ataque de nervos" (1988), que também consagra a atriz Carmen Maura como sua parceira.
Outras marcas acompanham o cinema de Almodóvar desde sempre, como o espírito folhetinesco e as combinações de cores gritantes.
Depois de um período em que a comédia se impõe, aos poucos o melodrama vai se tornar dominante, em tramas cada vez mais complexas, embora nem por isso o senso de humor tenha desaparecido.
Almodóvar entra na moda, mas parece pouco disposto a ceder a ela. Ora filma um mundo exclusivamente feminino, ora introduz ali cineastas ou escritores, não raro recorre a sua própria experiência ("Má Educação", de 2004).
O que acompanha o cineasta desde os primórdios, aquilo de que não abre mão, é do desejo (não por acaso sua produtora se chama "El Deseo"), tão intenso quanto diversificado, embora não se possa dizer caótico. Ao artista cabe, justamente, dar forma ao desejo humano, seus desajustes e sua errância.
Quem acompanhar esta retrospectiva verá um formidável painel de variações: homossexuais, transsexuais, pervertidos, mal amados, tristes, frustrados felizes. Muitos carregarão elementos fetichistas: capas de chuva, saltos de sapato.
Poderemos ser conduzidos ao universo fantástico ("Volver", de 2006), numa obra que se torna progressivamente mais cerebral, até chegar ao que é até hoje o seu ápice: "A Pele que Habito" (2011), em torno de uma mulher enclausurada por um famoso cirurgião plástico, criador de uma pele artificial.
Importa, no entanto, ressaltar a integridade da trajetória do diretor, em que a sexualidade a um tempo surge desenfreada, para no instante seguinte revelar todas as chagas que carrega.
Do humor ao melodrama, a integridade do cineasta espanhol sabe nunca se perder, se entregar à fórmula ou se trair: ao longo da retrospectiva estaremos sempre diante de obras diferentes entre elas, como se cada uma fosse reveladora da permanente inquietação de seu autor (e, invariavelmente, roteirista). A cada vez estamos diante de um Almodóvar que é sempre outro, que amadurece, mas nunca perde o espírito iconoclasta de seus primeiro filmes.
Sim, a Espanha pode passar por maus momentos, mas com Almodóvar sabemos sempre que Franco ficou para trás.