Crítica - Documentário
Obra retrata William Burroughs sem concessões ao didatismo
ESTILO SECO E POUCO DIDÁTICO DO FILME PODE SER DIFÍCIL PARA QUEM NÃO CONHECE AS OBRAS, MAS VIRA OURO PURO PARA OS APRECIADORES
RODOLFO LUCENA DE SÃO PAULOO título do documentário é "Burroughs: o Filme" (1983), mas bem que o registro sobre o escritor beat poderia ser "Retalhos de William Burroughs".
Com ajuda do próprio biografado, a obra traz pedaços da vida do escritor, "bicha internacional, viciado de quatro costados, assassino da própria mulher, acadêmico de Harvard e incontestável artista norte-americano" -conforme descrição do site para celebrar seu centenário.
Sem meias-palavras, o filme de Howard Brookner aborda cada um desses aspectos da trajetória do americano morto em 1997, aos 83 anos, autor de obras como "Almoço Nu" (Ediouro) e "O Gato por Dentro" (LPM).
O filme nasceu em 1978 como tese de final de curso na Universidade de Nova York, mas ganhou dimensões outras: ao longo de cinco anos, o cineasta pode acompanhar momentos de vida de Burroughs, que se oferece em francas entrevistas e se mostra em encontros inusitados.
É hilário, por exemplo, o diálogo do escritor com seu irmão mais velho em frente à casa onde moraram quando crianças. Mortimer (1911-83), meio sem jeito, confessa que tentou ler "Almoço Nu", mas abandonou o livro na metade. William nada diz, mas vira o rosto e olha para cima com a maior cara de paisagem.
Também divertido é o encontro dele com o poeta Allen Ginsberg (1926-97), antigo parceiro de jornada, ex-amante e companheiro de baladas e estripulias da juventude.
São dois velhinhos simpáticos -Burroughs bem mais machucado pelo tempo que o amigo- relembrando a época em que escandalizaram a América e ajudaram a abrir caminhos para a liberação sexual e a rebeldia social. Ambos fizeram parte da geração beat, expoente da contracultura norte-americana.
Mas nem tudo são flores. Burroughs narra com simplicidade e quase sem demonstrar emoção como matou a própria mulher com um tiro na cabeça, quando os dois, drogados, brincavam de Guilherme Tell (tiro ao alvo).
Mas a emoção do longa cresce com as falas do filho do escritor. E, principalmente, quando James Grauerholz, por décadas secretário e companheiro de Burroughs, relata como contou ao amigo sobre a morte do jovem, que era alcoólatra e tinha então 33 anos.
No terreno literário, é sensacional ouvir o autor falar sobre a construção de sua escrita, sua busca por novas palavras e estruturas, e de como aproveitou em seus livros anotações feitas ao longo da vida.
Tudo é mostrado em estilo seco, sem concessões ao didatismo, o que talvez seja difícil -ou menos interessante- para quem não conhece a obra dele. Mas é ouro puro para os apreciadores de Burroughs -que, tal como plateias da década de 1980, podem se deliciar assistindo ao autor lendo trechos de alguns de seus textos mais emblemáticos.