Babenco sem cortes
Diretor de 'Carandiru', 'Pixote' e 'O Beijo da Mulher Aranha' roda em São Paulo 'Meu Amigo Hindu', filme com toques autobiográficos protagonizado pelo americano Willem Dafoe
"Se você fizer pergunta idiota, te deixo em Paulínia." De bermuda estampada e camisa branca, o cineasta Hector Babenco, 69, recebe a Folha numa manhã de terça, às 8h.
O diretor de "O Beijo da Mulher Aranha" (1985), pelo qual foi indicado ao Oscar, e "Carandiru" (2003) convidou a reportagem a viajar com ele a Paulínia, interior de SP, onde roda parte de seu próximo longa, "Meu Amigo Hindu", após um hiato de oito anos.
No filme com toques autobiográficos, Willem Dafoe interpreta um diretor de cinema recém-saído de um tratamento contra uma doença grave. Babenco, argentino naturalizado brasileiro, teve um câncer no sistema linfático nos anos 90, curado após transplante de medula óssea.
-
Folha - Seu novo filme é sobre um homem que está se recuperando de uma doença grave, certo?
Hector Babenco - Estou num processo de construção do filme e ficar falando é penoso. Se você sabe a trama perde a graça. É sobre um homem que vai morrer, que sofre um tratamento invasivo e que convive com um menino hindu. O protagonista é diretor de cinema.
Por que decidiu rodar em inglês?
É um filme urbano, não faz a menor diferença se acontece em Paris, Londres ou Buenos Aires. Ia ser em português, mas foi impossível achar atores brasileiros disponíveis para o protagonista. Estavam alocados em novelas. Aí eu fui ver a peça de Bob Wilson em São Paulo no ano passado, com o Willem Dafoe no elenco ["The Old Woman - A Velha"]. Saí para jantar com Willem e falei do filme. Ele pediu pra ler o roteiro e gostou muito.
O que achou do trabalho dele?
Ele tem consciência das suas responsabilidades, jamais chegou atrasado, jamais se queixou de esperar para rodar um plano. Os estrangeiros não se veem como artistas, mas como operários da representação. Ele não tem vaidade artística, tem responsabilidade criativa. Tem um modelo de interpretação muito discreto.
Em "Meu Amigo Hindu" o personagem é um cineasta. É um filme autobiográfico?
Me alimentei de informações da minha memória. Mas não é biográfico, porque é ficcional. É a vida de um diretor que é condenado à morte.
A rigor o filme é isso. Não é alegre, mas é um filme que começa muito escuro e tem um final muito solar, uma explosão de luz.
"Coração Iluminado" também tem elementos autobiográficos.
Cada um encontra criação onde quer. Eu talvez tenha a limitação de não conseguir ver além do meu nariz. Não me vejo como artista, renovador da linguagem, não me vejo como porra nenhuma, mas como contador de histórias.
A inspiração para "Meu Amigo Hindu" veio de suas experiências com a doença?
Veio de mim. Mas não quer dizer que eu vou contar o que vivi. Com os momentos difíceis que passei e passo ainda hoje eu lido com psicanálise, autoanálises e sei lá.
O cinema não faz parte?
??Não, cinema é meu quintal, é bolinha de gude: eu jogando, eu fazendo pontaria.
E sua trajetória lá fora? "Ironweed" te deu dinheiro?
Não me deu dinheiro, me pagaram pra trabalhar. Com esse dinheiro economizei e consegui ter casa própria. Dinheiro ninguém me deu. No Brasil eu não sou pago pra trabalhar, porque o governo não me deixa colocar no orçamento mais do que um salário que eles determinam. Ninguém vive com isso, nem o contínuo do Ministério da Cultura. Jamais ganhei dinheiro no Brasil.
Nesta quinta começa uma mostra na Cinemateca com retrospectiva dos seus filmes.?
Fiquei sabendo porque me mandaram um e-mail, pedindo pôsteres e perguntando se tinha fotos dos filmes. Fazer o quê? Entrar lá com uma espingarda e matar todo mundo? Deixa eles. Eles vão se consumir na própria mediocridade deles. Eles têm os filme e as salas. Poderia eu proibir? Não sei, mas não vou estar presente. Ninguém me perguntou o que eu achava.
Que acha da atual política cultural de fomento ao cinema?
Vivemos numa cultura de concentração de recurso pelo Estado e o Estado com uma vocação gigante de ser a mãe produtora de tudo. Sou contra qualquer tipo de controle do Estado para a produção. Brasileiro vive de edital: não há um colega que não diga que está esperando sair algum edital. Se essas leis de incentivo não existissem, o cinema brasileiro andaria melhor.
Livre mercado no cinema?
Sim, como há 20 anos. E não se fizeram grandes filmes? Não tinha lei de incentivo. Havia retorno. Porque o ingresso não era obrigado a custar só R$ 10. Hoje, o governo te dá uma merreca: demora dois anos pra sair um edital e ganhar e poder fazer algo pra depois ter que cobrar R$ 10 o ingresso.
Como "Meu Amigo Hindu" está sendo financiado?
Com economias pessoais e ajuda de amigos. E com o edital do polo de Paulínia.
O que você acha que há de brasileiro e de argentino no seu cinema?
Sou um exilado no Brasil e um exilado na Argentina. Não consigo me fazer sentindo parte de nenhuma das duas culturas. E as duas coisas existem em mim de forma poderosa. O argentino tem um humor menos escrachado e muito mais inteligente que o brasileiro, né? O humor do brasileiro é muito mais "chanchadão". O da Argentina é mais irônico.
Atribuem a você a frase de que no Brasil não há ator como Gael García Bernal.
Jamais diria isso, foi uma "filhadaputice". Eu disse que não havia ator que pudesse trabalhar em espanhol, como ele. Que ator brasileiro poderia falar espanhol bem? Estão querendo mais é te enrabar do que ficar ouvindo a sua complementação.