Análise
Excessos não esconderam diretor singular
Com energia além da conta e marca brechtiana, Antônio Abujamra foi essencial para o teatro brasileiro
Na abertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, há dois meses, a organização saudou a presença de outros venerandos diretores, mas não Antônio Abujamra.
Foi uma descortesia, indicativa dos obstáculos que o grande encenador enfrentou desde a sua estreia no teatro profissional, em 1961.
Ele começou no palco amador gaúcho, ainda nos anos 50. Na virada para a década seguinte, conheceu na Europa o legado de Bertolt Brecht (1898-1956) via a companhia Berliner Ensemble (fundada pelo dramaturgo alemão) e seguidores franceses.
E foi na volta que dirigiu no Teatro Oficina, do diretor Zé Celso, uma peça de outro grande diretor, Augusto Boal, do Teatro de Arena, "José, do Parto à Sepultura".
Formou então seu próprio grupo, Decisão, de montagens significativas nos anos 1960, mas que sempre teria produção ofuscada pelos anteriores e mais festejados Arena e Oficina.
Abujamra foi único. Apesar de comandar aquele e outros grupos, como mais recentemente Os Fodidos Privilegiados, sempre se caracterizou pela voz singular, identificável em todos os espetáculos.
Seu teatro carregava as marcas brechtianas de origem, mas a abordagem derrisória que empregava para a sociedade e a política era muito própria, pessoal até.
Havia um excesso em seus espetáculos, com energia além da conta, dos grandes elencos aos extremos de grosseria no humor.
"Nostradamus" (1987) foi uma superprodução que sufocou qualquer viés político então buscado. "Um Certo Hamlet", de 1991, adaptação só com mulheres, virou uma comédia rasgada, grotesca.
Também suas versões para Nelson Rodrigues, como "O Casamento" (1997), escancararam descontroladamente o humor, no caso, com uma apoteose circense de 25 atores.
"O Inspetor Geral", de 1994, também era assim, mais Abujamra que Gógol. Como nas demais a que foi possível assistir, sempre parecia haver mais dele que do autor eventual.
Com alguma edição, poderiam ter sido encenações menos controversas, de presença mais definitiva na história do teatro. Mas então não seria Abujamra.
Nas últimas três décadas, no palco, o diretor se descobriu ator, mas era o mesmo Abujamra derrisório, abusado, tantas vezes ofensivo.
Desenvolveu uma vertente cômico-confessional, que começou em "Da Gaivota" (1998), passou pelo monólogo "O Veneno do Teatro" (1998) e foi terminar no programa "Provocações" (a partir de 2000), da TV Cultura.
Tornou-se personagem pública, uma celebridade reforçada pelos papéis em telenovelas, mas se manteve inquieto, aberto, como diretor e ator.
Para ficar num só exemplo, foi este Abujamra que, desviando-se da própria trajetória, se revelou fundamental à dramaturgia dos anos 1970, de Antônio Bivar, Leilah Assumpção, José Vicente.