Crítica livros/história
Vibrante, livro sobre Napoleão exige conhecimento histórico
Narrativa acompanha fatos dos 3 dias finais do imperador francês no poder
"Bouquinistes" são vendedores de livros usados e gravuras, instalados em bancas ao longo do rio Sena, no centro de Paris. Existe uma banca que se especializa em um único tema: a era napoleônica. Não faltam livros. O historiador francês Jean-Paul Bertaud é autor de vários deles.
É praticamente impossível para uma pessoa ler em vida tudo o que já se escreveu sobre Napoleão Bonaparte (1769-1821). Seus exércitos marcharam até a Rússia, no leste, e até Portugal, no oeste europeu. No caminho, foram moldando a sociedade desses países, à luz da Revolução Francesa de 1789.
Mesmo sabendo da abundância de livros sobre o tema, Bertaud conseguiu produzir uma obra original. Seu foco consiste apenas nos três últimos dias de governo do imperador francês, 21, 22 e 23 de junho de 1815.
EVENTOS
A escolha é curiosa, quando se pensa que um dos marcos da historiografia francesa do século 20 é a chamada Escola dos Annales, em que se enfatizava os processos históricos de "longa duração", com grande destaque para as influências de fatores sociais, econômicos e geográficos, em vez do tempo curto da história dos "eventos".
Três dias de "eventos" parecem muito pouco, mas outros autores, especialmente os de língua inglesa, fizeram coisa parecida. Como "Cinco Dias em Londres", de John Lukacs, que narra os eventos dramáticos em maio de 1940, quando a Grã-Bretanha estava ameaçada pela Alemanha nazista, e poderia pedir a paz, depois da derrota francesa.
O que estes dois livros têm em comum é o foco em dois dos mais importantes personagens históricos de suas épocas --Napoleão e o primeiro-ministro britânico Winston Churchill.
Outro ponto em comum nestas brevíssimas histórias é que são livros que podem ser lidos como romances de aventura, autênticos "thrillers" políticos. As intrigas, traições, discursos apaixonados --e mesmo os ocasionais momentos de humor-- são de fazer inveja a qualquer escritor de ficção.
DÚVIDAS
O livro de Bertaud, porém, tem um grave problema: devem ser poucos os leitores brasileiros capazes de entendê-lo completamente. É preciso conhecer muito bem a história do período para saber, por exemplo, quem é Joseph Fouché (1759-1820), chefe de polícia e político oportunista, e um dos principais conspiradores contra o imperador em seus últimos três dias.
Ou para saber a distinção entre jacobinos, "montagnards", liberais, realistas ou bonapartistas. E quem era o quê e quando, pois virar a casaca era um esporte popular.
A tradução é competente e há muitas notas explicativas. Mas, para alguém chegar ao completo entendimento, seria preciso muito mais.
"Acorrentado à rocha de Santa Helena, Napoleão ganha o perfil de um messias", escreve Bertaud. Os seguidores de Bonaparte transformaram o imperador autocrata no herdeiro da revolução, "mártir que se sacrificou para não mais se derramar o sangue francês" (isso depois de quase 1 milhão de franceses mortos nas guerras da Revolução e de Napoleão).
O próprio Bertaud compartilha dessa admiração hagiográfica: "A abdicação está menos envolta no crepúsculo de um deus sacrificado do que na luz dos homens que rompem cadeias".