Festival de Veneza
Kaufman estreia com animação não muito animada em mostra
Palestrante motivacional desmotivado estrela 'Anomalisa', dirigida pelo roteirista de 'Adaptação'
Filme em stop-motion rodado com fantoches, codirigido com Duke Johnson, concorre ao Leão de Ouro na Itália
É uma animação não lá tão animada o único filme do gênero na atual competição do Festival de Veneza. A comédia deprê "Anomalisa", dos americanos Charlie Kaufman e Duke Johnson, conta a história de Michael, desmotivado palestrante motivacional.
Para o personagem, todas as pessoas ao redor têm os mesmos rostos e mesmas vozes –no filme, são fantoches dublados pelo mesmo ator. Todos, menos Lisa (voz de Jennifer Jason Leigh), funcionária de telemarketing sem muito traquejo social e com baixíssima autoestima.
Michael parece acometido de síndrome de Fregoli –aquela em que o sujeito tende a acreditar que as outras pessoas do mundo são o mesmo indivíduo. Fregoli, aliás, é o nome do hotel em que boa parte da trama se passa.
É ali que o personagem conhece a esquisitona Lisa, única figura destoante de um mundo de gente massificada. O título do filme é uma corruptela entre o nome da moça e a palavra "anomalia".
O universo existencialista de gente desamparada é comum na obra de Kaufman, diretor de "Sinédoque, Nova York" (2008) e conhecido como roteirista dos inventivos "Quero Ser John Malkovich" (1999), "Adaptação" (2002) e "Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças" (2004).
O diretor, contudo, se esquiva de explicar o sentido da obra. "O filme é sobre uma hora e meia", brinca com o duplo uso do termo "about", que em inglês tanto pode significar "ser sobre" quanto "ter duração estimada".
"Não vou comentar sobre o que ele trata, não me sinto confortável", disse duas vezes a jornalistas, na entrevista coletiva após a exibição, o notadamente arredio diretor.
"Anomalisa" era um projeto de leitura dramática criada por Kaufman e ganhou apoio via campanha de financiamento coletivo para se tornar a primeira animação de Kaufman. Em dois meses, arrecadou US$ 406 mil, mais do que o dobro do que pediam.
"Era difícil que um estúdio financiasse esse projeto", diz o codiretor Duke Johnson. "E, mesmo que financiassem, teríamos que lidar com algumas imposições."
A "liberdade criativa" resultou em uma dos trechos mais comentados do filme: uma cena de sexo natural e desglamourizado encenada pelos fantoches. "Foi meio vergonhosa. Era muito íntima, embora não nos tocássemos", afirma Jason Leigh.
Noutra cena bem falada, ela canta "Girls Just Wanna Have Fun", de Cyndi Lauper, em inglês e italiano. "Foi a parte mais complicada", diz. "Sou tímida, até por isso me identifiquei com a personagem."
Em Veneza, a recepção do filme foi positiva, com risadas na cena da cantoria e aplausos ao final, mas não chegou a despertar reações tão entusiasmadas como as que o filme recebeu no Festival de Telluride, nos Estados Unidos, onde estreou no último fim de semana.
Questionado sobre o motivo pelo qual abortou o universo do telemarketing, Kaufman contou uma história de quando resolveu bater papo com um atendente.
"Não costumamos achar que eles sejam pessoas reais, e eles também não acham que nós sejamos reais."