O caso Dante x Goethe
Estamos em 2064 e desde janeiro temos vivido constantes ondas de boatos-escândalos, ainda mais que a ciência agora fala grosso e ela precisa de braços
9h15min. Frio matinal. Vou entrando no Instituto Goethe de Berlim. Sou Elisa, hoje é dia de meu aniversário. Penso um comando para meus óculos abrirem o iJornal... Opa!, mas já vazou isso? Que manchete cruel! "HOMENS TAMBÉM AMAMENTARÃO"
"Suas mamas, meu rapaz: é hora de fazê-las crescer". Por Santo Einstein! Não se trata disso, absolutamente. O fato é que a fabricação de alimentos já sintetiza o leite com o mapa do genoma e até traços do DNA materno. Porém o bebê não vinha assimilando integralmente o alimento, na ausência da mãe. A seguir, descobriu-se que a proximidade do pai ajudava. O fabricante se esmerou: a mamadeira passou a ter o formato do seio materno, e o pai, com o suspensório que o acompanha, pode manter o seio disponível para o bebê na mesma posição que a mãe o tem.
O sol havia envelhecido, sua previsão de vida diminuiu, ele terá apenas mais 5 milhões de anos. Quando a notícia-bomba saiu, todas as notas repetiam que "não havia motivo para desespero", mas foi justamente no que deu. Estamos em 2064 e desde janeiro temos vivido constantes ondas de boatos-escândalos, ainda mais que a ciência agora fala grosso e ela precisa de braços:
"MÃES CEDERÃO FILHOS À CIÊNCIA" --o que se acirrou: Os filhos nem falarão a língua dos pais.
Esse problema foi levantado no início do século 20. Em "Science and Sanity", Korzybski mostrou que as línguas indo-europeias estão repletas de conceitos metafísicos primitivos, que emperram a mente no momento do aprendizado da ciência. Portanto as crianças "cedidas" falarão um idioma extraído da álgebra + matemática moderna + teoria dos conjuntos. A rua batizou-a com o nome de "cientês".
"APOCALIP-SOL: SALVAR É CRUEL"
Atuo no Prog3, administro o relacionamento com a imprensa. Manfred, meu namonoivo, está no D-Cultura. Cuida de traduções para o cientês.
Ultimamente os abássidas, que foram historicamente grandes amigos da arte e da ciência, tomaram o poder político no Nascente, e a colaboração com o Estado Único Europeu foi muito fortalecida. Devido às necessidades urgentes da comunidade científica, o Oriente está atuando no desenvolvimento atômico, com plena liberdade em todos os níveis. No rol dos últimos escândalos, um diz que
"A CIÊNCIA NOS ATIÇA PARA UM FIM ATÔMICO"
Admirei-me: diante dessa notícia, as atitudes de grupos, países e pessoas foram as mais desencontradas. Eu mesma enfrento uma reação estranha: Manfred ficou indignado com o Instituto Goethe, quer processá-lo por desleixo com o patrimônio cultural da União Europeia (!!). Diz que os abássidas, agora em boas condições econômicas, querem "meter-se a cultos" e inventaram uma "sem-vergonhice", com a ajuda do padre espanhol Asín y Palacios.
Em sua obra de 1919, Palacios afirma que Dante, o próprio Alighieri, plagiou "A Divina Comédia" da obra do poeta Ibn Arabi de Múrcia. E Manfred assegura que o Goethe lhe deu guarida.
Consultei na biblioteca do Instituto a obra de Palacios: as coincidências são impressionantes. Mas não imaginem que abrirei a boca diante de Manfred para dizer isso. "Nem morta!", como diziam os bisavós dos bons machões brasileiros.
Saí lá pelas cinco da tarde, passei uns 15 minutos com os moleques da esquina (eles me aceitam, e eu sou eclética em amizades), apostando se os remanescentes carros que apontavam na curva eram elétricos ou a hidrogênio. Perdi cinco paus (cotação de moeda dinossáurica) e parti num táxi aéreo. Parei no prédio do D-Cultura, chamei pelo interfone "herr" Manfred Benvenutti; o aparelho abriu uma foto-viva em que ele aparecia preparando um macarrão para comemorar meus 50 anos, hoje completados.
Curioso como o medo processa suas fibras e se desloca no centro de cada personalidade, indo para terminais inesperados da histeria humana. Mas, como diz o verso de Eliot, assim acaba o mundo: não com uma explosão, mas com um suspiro.