Derrotas reais e imaginárias da esquerda
Brevíssimo almanaque de problemas públicos
RESUMO A objeção dos economistas ditos heterodoxos ao controle de gastos do governo e ao emprego de parcela maior da arrecadação de impostos para o pagamento da conta de juros da dívida pública suscita questões. Como financiar o deficit e como evitar o aumento da dívida pública, com seus custos, as taxas de juros?
Uma outra esquerda não é possível, a julgar pela reação da esquerda de fato ao anúncio da carta de intenções da política econômica para o segundo mandato da presidente Dilma Rousseff.
A nomeação de Joaquim Levy para o ministério da Fazenda e a divulgação do novo programa mínimo para a economia provocaram revolta ou resignação tática entre petistas e adeptos do governismo; à esquerda da esquerda no poder, causaram escárnio. A presidente teria ao menos em parte renegado o sentido da campanha vitoriosa da reeleição.
A guinada de Dilma 2 seria um erro essencial que vai prejudicar o crescimento: esta a objeção básica da esquerda ou de economistas, ditos heterodoxos, que apoiaram, com mais ou menos críticas, a política desenvolvimentista de Dilma 1. Além dos economistas, a crítica centra-se na ideia de que esse programa mínimo, que por ora trata quase apenas das contas públicas, representa uma derrota dos interesses de trabalhadores e mais pobres em geral.
Dilma 2 teria capitulado, se rendido ao interesse dos detentores do capital, em particular do "capital financeiro". Tratar-se-ia menos de uma decisão sujeita aos limites da política econômica, mas essencialmente de política e de interesses de classe, pois várias escolhas econômicas seriam possíveis, talvez igualmente possíveis.
Cabe então perguntar qual a coerência do argumento dito heterodoxo: como lidar com a escassez de recursos e quais as consequências da linha geral de suas propostas? Um debate dessa alternativa pode ilustrar um almanaque brevíssimo de problemas rudimentares do setor público, que é o que segue.
CRÍTICA No manifesto "Economistas pelo desenvolvimento e pela inclusão social", divulgado depois da eleição pelos ditos heterodoxos, antecipava-se a crítica básica ao que viria ser o programa mínimo de Dilma 2.
Nesse documento, diz-se que a presidente foi reeleita com base em programa e apoios de grupos "favoráveis ao desenvolvimento econômico com redistribuição de renda e inclusão social", que estaria ameaçado pela adesão do governo "[...]à austeridade fiscal e monetária, exigindo juros mais altos e maior destinação de impostos para o pagamento da dívida pública, ao invés de devolvê-los na forma de transferências sociais, serviços e investimentos públicos".
A objeção ao controle de gastos do governo e, além do mais, ao emprego de parcela maior da arrecadação de impostos para o pagamento da conta de juros da dívida pública (mais "superavit primário") suscita as questões:
1) Como financiar o deficit?;
2) Como evitar o aumento da dívida pública e os custos do seu financiamento (taxas de juros)?
Neste ano, o governo deve gastar o equivalente a 5% do PIB além do que arrecadou (é conta do setor público inteiro, governos das três esferas, mas basicamente a cargo do governo federal). Esse deficit corresponde a R$ 256 bilhões, dez vezes a despesa anual com o Bolsa Família. Na média dos últimos cinco anos, o deficit do governo foi algo menor, cerca de 3,2% do PIB.
Note-se de passagem que o governo não "vai ao mercado" apenas para tomar emprestado o bastante para cobrir o deficit anual. Tem de refinanciar a parte da dívida que vence no ano, outros 12% do PIB (cerca de R$ 614 bilhões). Ou seja, no ano, o governo tomará emprestados R$ 870 bilhões.
Considere-se, pois, o caso de aumentos de impostos, que jamais são neutros, embora seus efeitos sejam muito menos óbvios do que prevê a teoria padrão.
Não são neutros porque podem criar ineficiências econômicas, ainda mais em um sistema tributário confuso e caro como o brasileiro. Não são neutros porque redistribuem renda (para o bem e para o mal), alteram incentivos a produzir mais ou modificam a taxa de poupança de uma economia (poupança menor limita o investimento e, assim, o crescimento).
Mais relevante, para o debate em questão: aumentos sucessivos de impostos têm limites óbvios. A partir de certo patamar, emperram a atividade produtiva, minam a eficiência e suscitam descrédito (juros maiores) na capacidade futura do governo de controlar suas contas ou tomar emprestado para financiar sua dívida (pois matou a galinha dos ovos de ouro). É disseminada a impressão de que o Brasil está perto desse limite, consideradas comparações internacionais e o efeito da tributação sobre a economia nos últimos 20 anos. Mas há controvérsia.
É intrigante, ainda assim, que os governos do PT não tenham proposto um programa de aumento de impostos, e que tal plano não seja explicitado pelos críticos de Dilma 2. Um programa comedido e incremental, ainda que controverso, teria limitado o aumento da dívida e, portanto, da conta de juros, o que leva a mais aumento do deficit e menos crescimento, tudo o mais constante, num círculo vicioso.
Financiar os deficit por meio de empréstimos implica aumento da dívida pública, entre outros vários problemas. Aumentos sucessivos da dívida pública encarecem o seu custo, uma vez que os credores tendem a exigir juros maiores a fim de financiar e refinanciar os débitos do governo. O governo, o setor público brasileiro, ora deve o equivalente a 59% do PIB.
TAXAS DE JUROS "Baixar as taxas de juros" é um mantra entre adeptos leigos do desenvolvimentismo. Mas o governo não determina diretamente o nível das taxas de juros. Tal impressão parece derivar do fato de que, periodicamente, o Banco Central define uma meta para a taxa de juros de curto prazo, com o objetivo declarado de controlar a inflação.
Ainda que as taxas de juros no Brasil sejam uma aberração mundial de tão altas, seu nível caiu entre 2003 e 2012, e hoje parece haver muito mais dúvida a respeito de quão menores elas poderiam ser, dado o nível da inflação.
De qualquer modo, o nível da inflação limita a redução das taxas de juros --é possível ter juros de curto prazo mais baixos e inflação crescente. Ainda assim, os juros de longo prazo subiriam.
Pressuponha-se que a inflação não possa crescer mais, ainda que uma corrente heterodoxa não veja tanto problema nisso. Em vez de recorrer a uma combinação de altas de juros e limites de gasto público a fim de conter a inflação, não se pode controlar os preços, de algum modo tabelá-los? Em parte, o governo Dilma 1 tentou fazê-lo, com resultados problemáticos, como sói acontecer com tabelamentos.
Além de não explicitar o imperativo de elevar impostos, segundo a lógica de suas ideias, os desenvolvimentistas dilmianos não esclarecem sua política alternativa de controle de inflação.
Na Argentina e, mais ainda, na Venezuela, a alternativa tentada foi o controle cada vez mais intenso e extenso de preços e rendas em geral da economia.
Quanto aos juros, o BC influencia apenas as taxas de curto prazo, que decerto influenciam as taxas cobradas para empréstimos mais longos. O histórico de crédito do governo (se um dia deu calotes), o tamanho da dívida e do ritmo de seu crescimento, o tamanho da poupança nacional, o crédito e os juros internacionais, tudo isso afeta a taxa de juros que os credores exigirão. Recentemente, o governo tem evitado tomar empréstimos, dado o custo alto, devido ao aumento de seu descrédito.
Os detentores de riqueza financeira são, claro, os credores do governo. Pela ordem, são os fundos de investimento, fundos de pensão, bancos, estrangeiros, seguradoras. Nos fundos de investimento e de pensão está a poupança de famílias ricas ou remediadas. Fundos de investimento, nos quais estão aplicados cerca de R$ 2,4 trilhões, são os "fundos de banco", onde também a classe média aplica seus recursos.
"Baixar os juros" à força implicaria algum tipo de confisco ou calote, o que provocaria catástrofe econômica. Ademais, não resolveria o problema do financiamento do excesso de gastos, ao contrário: sem crédito, o governo dependeria apenas da receita de impostos, ainda mais reduzida. O "ajuste" seria então de fato violentíssimo.
Essa hipótese absurda é um exagero que chama a atenção para os limites da ação: não há como baixar as taxas e a conta de juros sem redução de deficit. Como reduzi-lo? Com impostos ou baixando o crescimento da despesa para um ritmo menor que o do crescimento da economia (não seria preciso "cortar", mas reduzir o ritmo de aumento da despesa).
Para onde vai a despesa? Para o INSS (aposentadorias, pensões etc.) vão 39% do gasto, excluída a despesa com juros. Para salários e aposentadorias de servidores, 23%. Saúde e educação levam 12%. Transferências sociais outras (Bolsa Família etc.), 11%. Gastos administrativos, 7%. Investimento, apenas 6% (o equivalente a 1% do PIB, um quinto da despesa como juros).
Estes são o Orçamento e seus usos. Compressões ou expansões desses limites implicam reduções ou aumentos das despesas com juros e dívidas, ou alterações nos impostos, todas com efeitos colaterais, positivos ou não, pincelados nos parágrafos acima.
Enfim, é preciso lembrar que tal debate diz respeito apenas a um aspecto da política econômica, a de curto prazo, a de estabilização de dívidas públicas, juros e inflação. Quaisquer que sejam as receitas para lidar com esses problemas, tais políticas não definem necessariamente um programa de desenvolvimento, progressista ou neoliberal, um assunto muito mais aberto e controverso entre economistas de qualquer coloração.