Do sindicato à religião
O individualismo da nova classe trabalhadora
RESUMO O debate sobre a estrutura social no Brasil passa pelo entendimento da nova classe trabalhadora. À diferença de sua antecessora clássica, ela não estrutura sua identidade a partir de ideais do chão da fábrica, mas sim em torno de comunidades religiosas que propiciam identificação baseada em medos e expectativas comuns.
Ao contrário da crença intelectual predominante nas últimas duas décadas do século passado --na academia e na esfera pública--, as classes sociais existem e travam lutas decisivas para toda a sociedade, nos diferentes contextos.
Isto porém não significa que os antigos sistemas conceituais e explicativos dedicados ao tema --como o marxismo e algumas teorias sociais da primeira metade do século passado-- sejam a melhor alternativa intelectual para a construção de um entendimento adequado sobre ele.
O apego a certos axiomas do pensamento marxista (que muitas vezes resultam de uma interpretação simplificada e pobre de Marx), por exemplo, em nada ajuda na tarefa de compreender o real significado das clivagens de classe para a ação social dos indivíduos.
O teorema marxista de que uma única e mesma estrutura de classes (entre proletários e capitalistas) perpassa todo o conjunto de campos e contextos sociais não se sustenta. A construção política de formas de solidariedade e reconhecimento social transclassistas mostra que a sociedade dispõe de sistemas capazes de produzir modalidades de identificação e pertencimento (como a solidariedade nacional que sustenta o estatuto transclassista da cidadania) que transcendem a reprodução da desigualdade de classes.
É o que podemos chamar de contingência (o caráter mutável, não necessário) da luta de classes.
A luta de classes, por mais penetrante que seja, não está fadada a ser totalizante no conjunto das relações sociais. Nem todas as relações sociais são relações de classe em luta.
No nível das trajetórias de vida individuais, essa contingência também se faz presente. Ainda que a origem de classe (ditada pela origem familiar) estruture a identidade social dos indivíduos, configurando expectativas de ascensão e atuação social nos mais diversos contextos, existem instituições capazes de reestruturar essa identidade, criando expectativas, interesses e sonhos que conferem novo rumo ao que o passado classista fez dos indivíduos. O engajamento no serviço militar é um exemplo; a escola republicana é outro.
Essas instituições têm vocação para transcender o vínculo de classe e para criar interesses sociais compartilhados entre distintas classes. A identidade de classe não é um dado nem um fato determinado por uma única dimensão da vida social. Está sujeita aos efeitos de instituições e agentes que sempre podem redefinir interesses, expectativas e projetos coletivos, capazes tanto de reiterar como de superar fronteiras de classe.
A consequência disso é uma "indefinição relativa" da identidade de classe. Essa "indefinição relativa" constitui o fermento das disputas ideológicas atuais em torno do surgimento e ascensão de uma nova classe social no cenário brasileiro, pois abre um campo de lutas pela definição da identidade de classe também por meio da identificação com outras classes ou frações de classe.
Aliás, a escolha da terminologia adequada já encerra uma disputa importantíssima. Se a denominamos "nova classe trabalhadora", projetamos uma "fusão de interesses" para "baixo", com o restante das classes populares; se falamos em "nova classe média", fazemos uma projeção para "cima", imaginando uma "fusão de interesses" com a classe média tradicional. O mesmo vale para a adoção ou não do adjetivo "nova".
FORDISMO Embora as possibilidades de identificação sejam em princípio muito variadas, a trajetória de vínculos institucionais típicos de uma classe limitam e estruturam essas possibilidades. O período fordista, por exemplo, marcado pela organização fabril do trabalho e pela estabilidade do emprego e da renda, ao favorecer a organização sindical, constituiu um perfil de vínculos muito particular, responsável por fazer com que a posição de trabalhador assalariado na esfera da economia se traduzisse em plataforma de ação coletiva no campo político.
É importante lembrar que essa ação coletiva esteve vinculada também à identificação com interesses e valores transclassistas, mesmo se o fordismo corresponde a um momento decisivo de oposição entre as classes. O perfil social dessa classe trabalhadora "clássica" é específico de pouquíssimos países e regiões do mundo.
O grande equívoco é tomar esse perfil contingente e datado como se fosse a "verdadeira e única face" da classe trabalhadora.
Assim como falamos hoje em "variações do capitalismo", podemos falar também em variações da "classe trabalhadora". O que chamamos de nova classe trabalhadora não dispõe das relações de produção fordistas para construir seu perfil de ação social e política; como sabemos todos, a ausência do sindicato como forma de organização sociopolítica é o principal sintoma disto.
No entanto, não basta saber o que não constitui o perfil desta nova classe; é preciso saber o que o constitui, sua positividade.
O equivalente mais cotado do sindicato para essa nova classe trabalhadora é a comunidade religiosa. Se não dispõe de uma organização (como o sindicato) capaz de operar a tradução e a identificação política a partir de interesses e estilos de vida forjados no chão da fábrica, essa classe encontra nas comunidades (especialmente as pentecostais) espaço para criar uma identificação (especificamente religiosa) a partir de dramas, medos e expectativas comuns.
A face religiosa da nova classe trabalhadora, que desnorteia e irrita o dogmatismo conceitual da intelectualidade antirreligiosa de distintas orientações ideológicas, não é um fenômeno inédito do Brasil, da América Latina ou dos "países em desenvolvimento".
Expandindo o conceito de classe trabalhadora para além da "noção fabril" de classe operária, vemos, por exemplo, que a classe trabalhadora das cidades médias e pequenas da Alemanha do século 19 e início do século 20 formou sua identidade coletiva com base na construção de um ambiente social católico que servia de contraponto tanto ao secularismo radical dos socialistas como ao protestantismo liberal das classes altas.
A diferença mais importante não é tanto se o elemento religioso está ou não presente, mas antes se a identificação coletiva fica ou não restrita a ele.
FALTA No caso da nova classe trabalhadora brasileira, a variação em relação ao modelo da classe operária fordista, sindicalizada, que levou à constituição do PT, costuma ser caracterizada pelo signo da "falta".
Tal caracterização descreve essa nova classe como desprovida das formas de mobilização e identificação coletivas (sindicato e partido) típicas do "perfil clássico". Por conta dessa "falta", costuma ser tachada de "individualista", em contraste com o sentimento de pertencimento coletivo resultante da inclusão sindical e partidária.
A isso se somaria uma orientação ideológica flutuante e mal definida, compondo um quadro interpretativo afinado com um sentimento de "perda" por parte dos setores progressistas do campo político. É esse sentimento que possivelmente melhor define a crise atual do chamado "lulismo", com a desfidelização anunciada de grande parte de sua base eleitoral.
O grande desafio, intelectual e prático, é o de compreender essa flutuação para além de definição pela "falta", apreendendo os elementos que produzem um tipo de orientação que o script ideológico tradicional não consegue captar.
Esse tipo de orientação --eis uma hipótese para futuras análises-- pode talvez ser pensado como uma espécie de "filosofia liberal popular", que embasa "espiritualmente" a identificação da nova classe trabalhadora com o ideário pequeno burguês do controle individual da vida em contraposição também ao modelo da grande empresa fordista.
Não se trata de uma orientação bem definida, mas de uma orientação disputada entre os agentes e instituições de mobilização política engajados em interpretar, de formas diferentes, a valorização da dignidade individual típica desta nova classe e, com base nesta interpretação, forjar compromissos transclassistas no campo político.
Essa hipótese parece plausível uma vez que a nova classe trabalhadora, como a velha, compartilha projetos de vida genuinamente ancorados nos valores e visões de "vida boa" do individualismo moderno, embora seja falsa a afirmação de que tal individualismo não tenha contrapesos comunitaristas --basta ver as redes de ajuda mútua criadas em torno das comunidades religiosas--, como também é falsa a tese de que a classe trabalhadora "clássica" não se orientava por valores individualistas.
A diferença principal dessa nova classe trabalhadora, quando confrontada a sua antecessora, reside na descrença relativamente maior nas formas de representação e participação políticas existentes --o que, no limite, acaba afetando sua adesão a projetos políticos baseados em uma maior politização das relações sociais.