Ponto crítico
Deboche generalizado
TEATRO | "TANTO FAZ"
Ricardo e Chico gostam de beber, vadiar e fumar maconha. Apreciam assistir aos filmes de Humphrey Bogart e Wim Wenders, ouvir Cartola e Lou Reed, ler Chacal e Thomas Mann. Entre uma transa e outra na Paris onde vivem, do final dos anos 1970, alternam conversas escatológicas e discursos sobre comportamento e gênero. Essa marginália cool que habita os romances de Reinaldo Moraes tem uma tipologia similar à dos personagens teatrais que frequentam o palco do teatro Cemitério de Automóveis. A própria aura rebelde em torno do ator e diretor Mário Bortolotto o coloca como uma espécie de encarnação real de algum protagonista do autor pornopopeico.
Essa atmosfera "décadence" está presente nesta nova adaptação de Bortolotto para "Tanto Faz", em cartaz no Cemitério de Automóveis, em São Paulo, até 28/6. O cenário resume-se a um sofá velho e uma mesa de bar. As incontáveis garrafas de bebidas consumidas e os cigarros de cannabis onipresentes no livro condensam-se, na montagem, em copos vermelhos e um baseadinho discreto. Essa economia visual em termos de adereços direciona a atenção do espectador para o texto.
Usando como recurso frequente a narratividade épica, o diretor consegue verter com eficiência o texto literário para a fala teatral, sem precisar mudar praticamente nenhuma palavra do original. Mesmo nas cenas dramáticas, o protagonista Eldo Mendes (Ricardo) usa um registro didático, direcionando a fala ao público, assim como o narrador faz no romance, de 1981. Desse modo, os experimentos linguísticos que Reinaldo Moraes emprega na obra --como a verbalização de expressões ("penabundear") e neologismos infames ("chupetáveis")-- soam coerentes e naturais fora do papel.
Embora adote a fidelidade textual como paradigma, a companhia não se abstém de propor um recorte propositivo para a obra em que se baseia. A montagem coloca-se como uma terceira via diante do binarismo político-ideológico que se impõe atualmente nas manifestações e redes sociais. Diante do extremismo de posições unilaterais, em que a defesa de teses pessoais ou partidárias ganha tom messiânico, o que se vê nos personagens é uma indiferença cínica.
"Que novos partidos? Não tem mais Arena e MDB?", pergunta Chico, sem muito interesse na resposta. Esse deboche literário-anarquista cai como uma luva nas mãos de um encenador como Bortolotto.
As experiências com a cocaína malhada da Europa e a "bad trip" com heroína não aparecem no espetáculo. Em vez disso, predomina um culto ao hedonismo mais suave, flertando com a malandragem.
A filosofia de botequim presente nas elucubrações de Ricardo e Chico e suas recusas perante uma cidadania burguesa convencional adquirem profundidade na medida em que se assumem como uma forma de alienação consciente de si mesma. Ricardo vive em Paris bancado por uma generosa bolsa de estudos em um curso de "planificação econômica para basbaques do Terceiro Mundo", mas nunca vai à aula, devido ao seu atribulado cotidiano ninfo-junkie. "Meu orientador agora é Charles Bukowski", diz a um colega careta que censura sua ausência.
Todavia o deboche generalizado da ficção termina por contaminar a montagem, e a interpretação de muitos dos 21 atores tangencia o completo amadorismo, sem resultar em potência cênica. As tentativas de tornar engraçadinhas as cenas de sexo, por exemplo, são constrangedoras.
É enigmático assistir ao elenco no registro do exagero, enquanto o diretor, que faz o papel de Chico, atua de modo contido, falando baixo, com gestualidade rarefeita, em total consonância com as possibilidades que o pequeno espaço do Cemitério dos Automóveis oferece. Até mesmo o desenho de luz, que faz a decupagem do espaço em planos menores, e o corte seco entre as cenas propõem como alternativa uma performance mais cinematográfica, ao estilo da adotada por Bortolotto.
Flanando entre chanchada e elã filosófico, entre o popular e o erudito, o espetáculo de poucos recursos consegue entreter e proporcionar reflexão, dando ainda uma boa alfinetada no establishment do politicamente correto, cada vez mais fervoroso em impor seus dogmas vorazes proscênio adentro.