Os mortos estão chegando
Coletivo artístico alemão enterra corpos de imigrantes
RESUMO O coletivo alemão Centro para Beleza Política mistura ativismo a performance teatral para criticar a postura do governo do país frente à atual onda imigratória ao continente europeu. Em seu mais recente ato, o chamado ZPS exumou corpos de mortos na travessia do Mediterrâneo e os enterrou em Berlim.
Alemães se reúnem na área islâmica de um cemitério em Berlim ao redor do caixão de uma síria de 34 anos que se afogou tentando atravessar o mar Mediterrâneo. Seu objetivo, dizem, é torná-la visível. A atenção, porém, está no entorno: cadeiras vazias com o nome de políticos alemães se enfileiram atrás da cova, e dezenas de câmeras fotográficas disparam enquanto um dos presentes, que como outros tem o rosto manchado de carvão, afirma: "Isto não é ficção, isto é a realidade".
O enterro, ocorrido no mês passado, foi um dos atos de "Os Mortos Estão Chegando", do Centro para Beleza Política (Zentrum für Politische Schönheit, ou ZPS), grupo que desde 2008 realiza ações controversas na capital alemã. A mais recente delas foi exumar os corpos de dez refugiados, encontrados em covas coletivas na Sicília, e sepultá-los em Berlim.
A ação se baseia em um contexto real: mais de 50 mil imigrantes chegaram de barco à Itália na primeira metade de 2015, e ao menos 1.800 morreram no mar. Seus corpos costumam ser enterrados em locais improvisados nas cidades de fronteira ou são deixados por meses em sacos plásticos, empilhados em frigoríficos.
Também como de hábito, a realidade em algum momento se mistura à invenção. Em 2014, o ZPS lançou um falso plano de emergência federal para salvar 55 mil crianças sírias da guerra. No fim do ano, enquanto se celebravam os 25 anos da queda do Muro de Berlim, o grupo roubou cruzes que homenageavam as vítimas da Alemanha Oriental e instalou-as em cercas de fronteira da União Europeia, evocando as mortes recentes dos imigrantes.
Para lançar "Os Mortos Estão Chegando", o coletivo garante ter identificado os corpos e feito o transporte com autorização das famílias, mas se recusa a explicar como. A justificativa vem do filósofo e diretor de teatro Philipp Ruch, 34, mentor artístico do grupo e defensor da ambiguidade entre verdade e ficção.
Ele explica que seu objetivo é nada menos do que salvar a sociedade por meio da arte. E que é próprio da ação artística o público não saber o que se passa.
Outros integrantes do Centro para Beleza Política, no entanto, irritam-se quando surge a dúvida: o sepultamento é de verdade?
O PRIMEIRO ENTERRO Ao lado do caixão da mulher síria, um outro pequeno, aberto e vazio, presta homenagem à sua filha de dois anos, desaparecida no mar. O marido e três filhos do casal conseguiram se salvar e estariam desde março na Alemanha, mas longe da capital, sem poder viajar devido a restrições de circulação impostas aos requerentes de asilo.
Antes da cerimônia, Stefan Pelzer, 29, o relações públicas do grupo, dirige-se à imprensa: "Estamos aqui para nos despedirmos de uma vítima da luta da Europa para se fechar aos imigrantes", grita. "Isto não é ficção, isto é a realidade."
Sobre um tablado vermelho, cadeiras com os nomes de 39 políticos convidados, mas ausentes, formam uma tribuna de honra em frente às bandeiras dos países da União Europeia. Na primeira fila, lugares reservados para a chanceler Angela Merkel e o Ministro do Interior, Thomas de Maizière.
O imã Abdallah Hajjir canta junto a uma dezena de muçulmanos e pede por justiça social.
O SEGUNDO ENTERRO O imã está lá novamente, a rezar e lembrar os que arriscam a vida no mar. Há menos encenação, mais silêncio. Os jornalistas, no entanto, estão interessados em saber sobre a "marcha dos determinados", anunciada para encerrar a ação.
O ato final seria um cortejo fúnebre até a Chancelaria Federal, em cujo gramado se enterrariam os outros corpos vindos da Itália. Com ingenuidade, cinismo –ou encenação–, membros do grupo se surpreendem com a proibição do transporte de cadáveres e seu sepultamento às portas do governo, e convocam uma simples passeata.
A MARCHA Cerca de cinco mil pessoas caminham até o centro político de Berlim. Quase não se veem imigrantes, eles que um dia antes lotaram as mesmas ruas em manifestação pelo Dia Mundial dos Refugiados. A marcha é loura, jovem e de língua alemã.
Integrantes do Partido Pirata tomam a frente da caminhada, que traz um carro de uma funerária islâmica. Ao fim do trajeto, um cartaz mostra um modelo do planejado "cemitério dos imigrantes desconhecidos" e uma foto do Ministro do Interior, apontado como o responsável pelos "assassinatos burocráticos" nas fronteiras. As bandeiras da Alemanha e da União Europeia cobrem dois caixões fechados, mas vazios.
As grades em frente ao parlamento alemão são derrubadas. Enquanto os membros do ZPS vão embora, o gramado é tomado pelos participantes. Eles ficam ali por mais de uma hora, até serem expulsos pela polícia. Cavam a terra, criando falsos túmulos, com flores e cruzes que dizem "fronteiras matam" ou "objetivo: Europa/estação final: Mediterrâneo".
No fim do dia, a hashtag #dietotenkommen (os mortos estão chegando) é a número um do Twitter na Alemanha. Os aplausos à ousadia dos enterros têm menos eco no país do que as acusações de mau gosto, desrespeito aos mortos ou "pornografia política", como classifica o "Süddeutsche Zeitung".
A possível exumação de fato dos cadáveres é o alvo da maioria das críticas, apesar de a potência da ação estar na realidade: olhar para os mortos. Sem ela, resta uma encenação em que os políticos são os vilões e a superioridade moral é simbolizada pelo carvão no rosto, "a esperança queimada da República Federal da Alemanha", explica Joschka Fleckenstein, 22, um dos integrantes do grupo.
Ele rejeita, como os outros, a alcunha de manifestante. "Não organizamos os enterros por protesto, como dizem os jornais. É um ato de beleza receber os mortos da Europa, fazer um enterro que eles não tiveram. Queremos devolver-lhes a dignidade", repete. "Isto não é teatro".
Sem teatro, porém, o Centro para Beleza Política seria apenas mais um grupo ativista.
Sem o suspense dos cartazes que anunciam a vinda dos mortos, sem os elementos cênicos junto às ações e sem as indagações sobre veracidade –apesar da repreensão a quem dela duvide–, ele não poderia se considerar um grupo de arte nem ser notícia constante.
"Eu me sinto muito irritado em ter que, como artista, cumprir o papel dos políticos", afirma Ruch, que usa o termo "humanismo agressivo" para classificar seus trabalhos, já apresentados no Teatro Gorki e na Bienal de Berlim.
A agressividade está não apenas nos temas e na forma de abordá-los, mas no tratamento dos que consideram culpados pela sociedade sem esperança. Em 2009, para financiar o projeto "Lírios d'Água para a África", que pretendia espalhar mil balsas no Mediterrâneo para salvar imigrantes, o ZPS pôs Angela Merkel à venda na seção de usados do e-Bay. Sem sucesso.
Desta vez, o objetivo era obter 14.900 euros para enterrar dez entre os milhares de não salvos. À venda, itens como "laudos psiquiátricos sobre o estado do Ministro do Interior" (10 euros cada, 399 aquisições) e "um fim de semana na fronteira da Grécia, com visita guiada a covas coletivas, com pernoite e meia pensão" (5 mil euros, sem comprador).
Foram arrecadados 55.165 euros em 18 dias, período em que os principais jornais alemães reportaram e analisaram os três atos: dois enterros e uma marcha. Depois do último deles, porém, ninguém mais perguntou sobre o destino dos outros oito mortos, quem sabe ainda à espera de um enterro.