Venezuela sofre com 'prima' da dengue
Com 32 mil casos oficiais, país é o mais afetado pelo surto de febre chikungunya, que atinge as Américas desde 2013
Críticos dizem, porém, que o número de casos é muito maior que o divulgado e que a situação é de epidemia
Uma loja de artigos para bebês em Maracay, 100 km a oeste de Caracas, ilustra o rastro deixado pela epidemia de chikungunya, uma febre semelhante à dengue que arrefece na Venezuela, mas avança no Brasil.
Dos 18 funcionários, 12 pegaram o vírus. Voltaram ao trabalho, mas ainda têm dor nas articulações, típica da doença transmitida por mosquitos Aedes.
O dono da loja, Miguel Arias, que também foi contaminado, sente no bolso o impacto do vírus. "Muita gente faltou. Quando a moça do caixa adoeceu, coloquei a secretária em seu lugar, mas isso atrasou a contabilidade."
Arias diz que a perda de produtividade derrubou em 7% a receita desde junho, quando o surto surgiu em Maracay e se espalhou pelo país.
Maracay se tornou uma espécie de capital nacional do chikungunya por causa de falhas no saneamento, do clima quente e da proximidade de um lago propício para as larvas do mosquito.
Numa indústria de processamento de alimentos da cidade, 70% dos 128 operários foram infectados. As vendas caíram 50% desde agosto, segundo a proprietária.
A doença sobrecarregou hospitais e, num país assolado pela escassez de remédios devido à dificuldade de importação, esvaziou ainda mais os estoques de paracetamol, único tratamento.
"Dos pacientes, 30% têm problemas crônicos, que exigem tratamento por meses, e 10% precisarão de cuidados por mais de um ano", diz o infectologista Julio Castro.
Especialistas divulgarão nas próximas semanas relatório para quantificar o impacto econômico da doença.
Com 32 mil casos, a Venezuela é o país mais afetado pelo surto que atinge as Américas desde o ano passado, segundo a Organização Panamericana de Saúde (Opas).
O Brasil já tem 1.364 casos confirmados do vírus, que causa vômito e erupções na pele, mas tem baixa letalidade (1 morte para 1.000 casos).
SUPERIOR
Críticos, porém, dizem que a cifra venezuelana real é muito superior e acusam a Opas de complacência com o governo de Nicolás Maduro ao falar em surto --e não em epidemia-- e ao não pressionar autoridades a declarar estado de emergência.
A Opas também é contestada por omitir em seus dados públicos a ocorrência de algumas mortes por chikungunya que o próprio governo venezuelano reconheceu.
Segundo infectologistas independentes, a maior parte do 1,4 milhão de casos de febre aguda registrados nos boletins epidemiológicos semanais do Ministério da Saúde são relativos ao chikungunya.
O ministério não divulga boletim há cinco semanas.
"Houve 200 mil novos casos de febre aguda por semana em novembro: é evidente que se trata de epidemia", diz o médico Felix Olett, ministro da Saúde até a eleição de Hugo Chávez, em 1998.
Segundo Olett e outros especialistas, o número de casos chega a 3 milhões se incluídos infectados que não foram ao médico --10% da população venezuelana. "É a maior epidemia de que se tem registro no país", diz Castro.
Especula-se que, ao minimizar a situação, o governo esteja tentando conter o pânico da população e evitar custosas campanhas de saúde pública.
DESACELERAÇÃO
A epidemia começou a dar sinais de desaceleração no último mês. O governo anunciou queda de 5% no registro de novos casos na semana passada em relação à anterior. Isso prova, segundo autoridades, o êxito das campanhas de fumigação e alerta.
Médicos também veem um recuo, mas por outros fatores. "Depois que muita gente é infectada, pessoas desenvolvem anticorpos que se tornam barreira natural contra o vírus. É um ciclo natural", diz Castro.
Ele também afirma que a estação atual, de temperaturas amenas e pouca chuva, reduz a proliferação do Aedes aegypti, um dos mosquitos transmissores.
Médicos dão como certo novo surto em 2015, por duas razões: a volta das chuvas abundantes, em maio, e a falta de conscientização da população, devido à pouca transparência do governo.
"Em 2015, 90% da população poderá ser contaminada", prevê Elia Sanchez, presidente da Sociedade Venezuelana de Infectologia.
O governo não quis falar com a reportagem da Folha.
Reservadamente, um médico da rede pública disse que não cabe só ao Estado atuar contra o vírus.
"Enquanto o venezuelano continuar achando feio botar tela em portas e janelas, mosquitos seguirão entrando nas casas e picando."