Alvaro Costa e Silva
As baratas do Mário
RIO DE JANEIRO - Quem esperava dores de amores, taras inconfessáveis, desvarios de exibicionismo, ficou chupando o dedo. A divulgação semana passada da carta "secreta" de Mário de Andrade, endereçada a Manuel Bandeira em 1928 e que permanecia guardada a sete chaves na Fundação Casa de Rui Barbosa, só revelou o zelo exagerado dos burocratas da cultura. De tão convencional e prosaica, poderia ter saído da pluma do conselheiro Acácio.
O autor de "Os Filhos da Candinha" refere-se a sua "tão falada (pelos outros) homossexualidade". O trecho comprova que ontem como hoje o mexerico sobre a vida alheia é esporte nacional. O jornalista Jason Tércio, que prepara uma biografia do escritor, já havia revelado mais e melhor: Mário de Andrade era bissexual.
Há mistérios mais palpitantes envolvendo o homenageado da Flip. Sua relação com o Rio, em especial o samba, é um deles. Em 1938, depois de pedir demissão do serviço público em São Paulo, o escritor chegou ao exílio carioca, que duraria até 1941. Caso tenha se animado a ligar o rádio nesse período, Mário ouviu, em primeira mão, "Camisa Listrada", de Assis Valente, "Último Desejo", de Noel Rosa, "Aquarela do Brasil", de Ary Barroso, "Da Cor do Pecado", de Bororó, "Acertei no Milhar", de Wilson Batista e Geraldo Pereira, entre dezenas de outras do mesmo nível.
Provocado por amigos como Lúcio Rangel, que, com toda razão, o tinha em alta conta como pesquisador musical, ele prometeu um ensaio sobre o samba urbano carioca, mas jamais o fez. Numa crônica, preferiu lamentar a praga que se instalara no seu apartamento da rua Santo Amaro, na Glória: "Exércitos de baratas, baratinhas, baratões, num assanhamento de Carnaval. E é monstruoso, é por completo inexplicável este amor entre baratas".
As cascudinhas deviam ser do samba.