Em 2012, convidei Carlos Heitor Cony a participar de um debate em São Paulo sobre Nelson Rodrigues, num ciclo promovido pelo Sesi sobre o centenário de Nelson, organizado por mim. Cony, então com 86 anos, já estava em cadeira de rodas. Movia-se com dificuldade, mal saía de seu apartamento na Lagoa, quanto mais do Rio.
O fato de aceitar transportar-se até outra cidade para participar de uma mesa só podia indicar uma grande admiração por Nelson —ou consideração pelo organizador.
Ao chegar ao prédio da avenida Paulista, onde se daria o debate, Cony foi recebido na garagem pelas moças encarregadas da produção. Elas observaram nervosas enquanto ele era a custo descido do carro e colocado na cadeira. Uma delas perguntou, aflita: "Está tudo bem, Dr. Cony?".
E Cony, piscando para mim: "Não passo desta noite".
Seguiu-se um alarido. Elas acreditaram nele e acharam que o desenlace poderia acontecer ali mesmo, na porta dos elevadores, ou no meio do evento. Uma quase começou a chorar. Tive de me meter e dizer que era brincadeira, que ele estava ótimo, nada aconteceria. E, de fato, nada aconteceu, exceto o brilho habitual de Cony naquela mesa, usando Nelson como pretexto para falar de jornalismo, coragem, liberdade de opinião, censura –o que, de certa forma, era a história dele próprio. E, de novo chamando a minha cumplicidade, meteu na conversa um de seus assuntos favoritos, as Guerras Púnicas, que nada tinham a ver com Nelson. Seu jeito moleque sempre dizia a última palavra.
Cony nos habituou à ideia de sua morte. No começo dos anos 1990, recém-saído de um câncer de próstata perfeitamente resolvido, ele às vezes aparteava a si próprio para informar: "Você sabe, não, Ruy? Sou um homem terminal". Minha ignorância a respeito de câncer levava-me a achar que ele estava falando sério. Mas os anos se passavam e o homem terminal parecia mais ativo do que nunca, principalmente depois que um romance chamado "Quase Memória", em 1995 –seu primeiro em mais de 20 anos de silêncio no gênero– devolveu-o espetacularmente à literatura.
No ano seguinte, recebemos juntos o Prêmio Jabuti de Literatura, cada qual em sua categoria (ele, por "Quase Memória"; eu, por "Estrela Solitária –Um Brasileiro Chamado Garrincha"), e Cony partiu dali para uma espantosa carreira de conferencista. Passou a ser solicitado a dar palestras para plateias de cidades de que nunca ouvira falar, e não recusava convite. Calculo que, apenas pelos cinco anos seguintes, Cony tenha feito perto de 300 palestras –no mínimo, uma por semana.
E, se todas foram iguais a algumas a que assisti, posso avaliar o encantamento de tantas plateias por ele.
Um ano depois do ciclo do Sesi, 2013, Cony nos surpreendeu de novo ao aceitar um convite ainda mais torturante: o da Feira de Frankfurt, dedicada naquele ano ao Brasil –e lá se foram, ele e sua mulher, Beatriz, para a Alemanha. Na qualidade de autor brasileiro mais velho ali presente e com uma obra daquele tamanho, era obrigatório que lhe dessem, só para ele, um auditório e uma plateia de gala. Mas não foi assim.
Escalaram-no com outros quatro romancistas numa sala fora de mão, à noite e a quilômetros do pavilhão da feira e, talvez para homenageá-lo, determinaram que fosse o último a falar. Só se esqueceram de avisar aos outros que refreassem a narrativa sobre seus complexos "processos de criação" porque, mais de duas horas depois, ao chegar a vez de Cony, o auditório se reduzira a meia dúzia de pessoas esgotadas, entre as quais eu. Ele não se alterou. Falou como se nós, os gatos pingados, fôssemos a plateia mais importante do mundo. E não tocou no seu "processo de criação".
Chega. Este não é um obituário. Estou contando essas histórias apenas para disfarçar o sentimento de perda pela morte de alguém com quem convivi por tanto tempo –56 anos como leitor, 49 como amigo– e que, sem querer e sem saber, me influenciou mais do que qualquer outra pessoa. Quando Cony começou a escrever sua coluna "Da Arte de Falar Mal", no "Correio da Manhã", em 1962, não podia imaginar que sua visão cética e irônica estivesse marcando para sempre um garoto talvez já predisposto a esse ceticismo e ironia –mas que precisava de um aval daquele peso para carregá-los pela vida.
Fomos assim, eu e Cony. E, como compete aos céticos e irônicos, nunca discutimos esse assunto.
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