A jovialidade, o humor e as birras nada cederam à voracidade do tempo

JANIO DE FREITAS

Entre a mocidade e os 90 anos do Tinhorão há apenas uns quilos a mais e cabelos a menos. A jovialidade, o humor e as birras nada cederam à voracidade do tempo. Ainda na primeira metade desse percurso, porém, as variações da vida proporcionaram a correção de um desvio que atraíra Tinhorão. É verdade que menos por gosto e mais por circunstâncias, Tinhorão se profissionalizou como jornalista. Bacharel em direito, no jornal escapou dos tribunais, mas não resistiu ao espírito do "Diário Carioca".

José Ramos Tinhorão, que faz 90 anos na quarta (7)
José Ramos Tinhorão, que faz 90 anos na quarta (7) - Karime Xavier/Folhapress

Muito modesta se comparada ao jeito de repartição ministerial das Redações atuais, a do "Diário Carioca" tinha um atrativo único: eram horas e horas de recreio para adultos, muitos intelectualizados, todos identificados (sim, uma exceção de praxe) com o temperamento de um jornal que o trazia já no nome. Nos cinco anos, mais ou menos, em que o DC fez a imagem ainda vigente, o brilhante Tinhorão era o mais familiarizado, até por natureza, com esse ambiente em que se entrosavam o trabalho requintado e o bom gosto do humor refinado. Estava na sua praia.

Engano. A ocupação autêntica de Tinhorão estava fora do jornal e, mais ainda, do jornalismo. Suas companhias ao longo do dia e no bonde Urca eram Jean de La Bruyère, Étienne de La Boétie, Restif de La Bretonne e outros franceses dos séculos 16, 17 e 18, secundados por portugueses e brasileiros. A literatura e a pesquisa histórica eram o seu interesse. E muitas namoradas de ocasião.

Chamei Tinhorão para o "Jornal do Brasil" e lá instauramos um sucedâneo do ambiente DC que foi de grande importância para o sucesso do JB. Ao deixar o jornal, entreguei o lugar a Tinhorão. Apenas por justiça e certo de que a solução não duraria, incapaz de sobrepor a limitação intelectual do jornalismo, e do leitor médio, à inclinação do novo chefe para a erudição ativa.

A brevidade da experiência resultou positiva. Tinhorão dedicou-se mais à pesquisa histórica, alargou seu interesse com o estudo da formação musical brasileira e chegou a uma realização fundamental: foi a busca de Tinhorão que localizou e desencavou a abandonada Velha Guarda. A começar já de Cartola enfurnado em área relegada do centro do Rio. Daí veio uma restauração extraordinária, tanto musical como histórica, reconhecido o samba como expressão também social de um país repleto de discriminação.

A concepção materialista sujeitou Tinhorão a toneladas de críticas. Seu senso de humor nunca se perdeu por isso. As birras, idem. O jornalismo teria ainda uma oportunidade, com um convite chegado de São Paulo. Mas o redator carioca e o jornalismo paulistano não se adaptaram, mutuamente. Azar do jornalismo e dos paulistas. Tinhorão apertou mais o cinto, reduziu os gastos ao nível da sobrevivência, passou a viver em um apartamento-cubículo, usando saco de dormir —tudo para não ter mais emprego, ocupar o espaço com o material de pesquisa e expandir o seu brilho e a sua originalidade nos livros que logo o fizeram sucesso em Portugal. E no ranheta Brasil tanto tardaram ao reconhecimento merecido. Azar dos brasileiros.

Tinhorão aos 90 é uma ideia que não bate bem. Ano passado, estivemos juntos em um depoimento seu ao admirável Instituto Moreira Salles-RJ. Saímos juntos para conversar —e foi, com precisão, como se saíssemos fim de noite do "Diário Carioca". Bem, isso não havia: Tinhorão mudava de mesa, até à porta, e de repente fugia, para não perder o último Urca.

Janio de Freitas

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