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O Brasil é impressionante, ele não tem governo, mas anda sozinho, diz Cristovão Tezza, que lança novo livro

Escritor lança 'A Tirania do Amor', obra faz provocações sobre crise nacional

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O escritor Cristovão Tezza
O escritor Cristovão Tezza - Theo Marques/Folhapress
São Paulo

Cristovão Tezza, 65, está escrevendo a quente. Seu novo romance, “A Tirania do Amor”, que chega agora às livrarias do país, tem como pano de fundo o Brasil de 2017 e seus debates cheios de fúria.

No livro repleto de provocações políticas de Tezza, colunista da Folha, conhecemos a história do economista Otávio Espinhosa, um gênio da matemática que decide renunciar à vida sexual.

Pouco a pouco, descobre-se uma série de crises que o levaram àquela decisão —o casamento em ruína, o filho militante irascível, a provável demissão, a empresa na qual trabalha está envolvida em um escândalo de corrupção.

Está no livro também a pesquisa formal de Tezza, que acumula alguns dos principais prêmios literários do país. Na estrutura da escrita, o autor trabalha com a simultaneidade do tempo —de forma que presente e situações do passado aparecem misturados.

Em entrevista à Folha, por telefone, o escritor comentou não só os aspectos formais do romance, mas os temas políticos que o atravessam.

 

No livro, o sr. busca conexão mais forte com a atualidade. A obra se passa em 2017, em meio a um escândalo de corrupção. Por que essa escolha? Quando escrevi “A Tradutora” [em 2016], entrei diretamente no momento do Brasil. Não tenho medo de ficar datado. Mas não pode ser panfletário, partidário ou fazer defesa de tese. É ficção, são as pessoas que interessam. Para quem vive o que o Otávio está vivendo, a política é um pano de fundo difuso. 

As pessoas não estão preocupadas com a prisão do Lula, mas com o preço do abacate, na medida em que você não tem uma quebra institucional brutal [no país]. O Brasil é impressionante, ele não tem governo e anda sozinho. 

O sr. fala em pano de fundo, mas há diversas provocações políticas no romance. Tentei pensar no que se passa na cabeça de uma pessoa da classe do personagem. Aí você toca em mil assuntos, racismo, a questão da mulher. Todos os ideologemas do momento, numa perspectiva da geração dele. Ele é um cara de direita, como qualquer economista em sua situação profissional.

A estrutura do romance parece muito cerebral, com a mistura das linhas temporais. Por que essa opção formal? São quase simultâneos o passado, o presente e o futuro. Há cenas do começo na última página e cenas do fim perto da metade. É uma tentativa de recriar o pensamento, mas claro que como representação. 

Não estou fazendo discursinho [em defesa] do realismo do século 19, como dizem. A simultaneidade é a cabeça contemporânea, a internet explodiu o olhar analógico sobre as coisas, as pessoas fazem tudo ao mesmo tempo. E a literatura se encaminhou para isso até do ponto de vista sintático.

Por que olhar a realidade pelo viés da ficção? As discussões contemporâneas são um papel do romance. Marx dizia que para entender o capitalismo na França era preciso ler as obras completas de Balzac.

Depois dos anos 1970, houve um mal estar com o registro realista da prosa. Houve uma poetização que apagou esse reflexo social. Hoje isso está voltando.

O romance traz mais perguntas do que respostas. O próprio questionamento é uma forma de se posicionar? Sim, é um tipo de desmontagem de chavões, das respostas fáceis para a indignação brasileira. O livro coloca questões econômicas, a própria questão do papel do Estado. 

A tese do protagonista é um ataque aos estamentos do funcionarismo público, que realmente é uma casta de privilegiados. Historicamente. Toco em questões para as quais eu mesmo não tenho resposta, mas transformei Otávio Espinhosa numa hipótese.

O livro toca em pontos políticos sempre polêmicos, como este tema. O sr. teme reações? Com “A Tradutora” senti certa reação, mas não me preocupa. O pessoal me pergunta se Curitiba mudou com a Lava Jato. Não mudou nada com a prisão do Lula, a não ser para o pessoal do acampamento. Mais importante do que a República de Curitiba é a República que matou Marielle. Ali sim há uma questão devastadora para o Brasil. Com todos os problemas, o país não teve um rompimento institucional radical.

O sr. acha que fez mais provocações à esquerda do que à direita no livro? Com certeza. A elite intelectual brasileira é inteira de esquerda. O Brasil [como país], do ponto de vista institucional, diria que está à esquerda por ser organicamente estatizante. Temos um amor ao Estado... Todos, do milionário ao pobre. 
Se comparar o Geisel e a Dilma, encontra mais proximidade entre as políticas econômicas do que qualquer coisa.

O protagonista se questiona se, para combater problemas como o racismo, é preciso  levar junto outros como o déficit da Previdência. Discussões comportamentais e culturais no país parecem levar automaticamente a uma sovietização da economia. 

Se o presidente defender o casamento gay, tem que defender o Banco do Brasil, os Correios. Mas é possível uma economia aberta, liberal, e uma política cultural aberta também.

Outro debate em que o sr. inclui uma provocação é o identitário. Uma personagem negra diz, em dado momento, não querer “submeter a sua vida à pauta da mitologia da sua raça”. O que o sr. quis dizer? O discurso identitário pode ser assustador. Já ouvi que não tenho direito de escrever com personagens negros porque não sou negro. 

É abdicar da condição humana. Se não posso representar um outro, realmente acabou. É uma questão filosófica, sobre limites da ideia de universalidade do iluminismo e limites da cultura identitária tribal, que está voltando com o nacionalismo e outras coisas. A construção da subjetividade pode se livrar do atavismo racial, cultural, religioso? 

O pai da personagem é negro, a mãe, branca. É a situação de milhões de pessoas no Brasil, é o país mais miscigenado do mundo. 

Não vou defender Gilberto Freyre, mas ele chamou a atenção para isso. O racismo americano tem a ideia da gota de sangue [negro] que condena [alguém]. Tentam importar essa teoria, isso não faz o mais remoto sentido no Brasil.

A Tirania do Amor

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