'Não sou maldito, sou é bem-aventurado', diz cineasta Neville D'Almeida

Aos 77, diretor é tema de documentário e prepara nova versão de seu sucesso 'A Dama do Lotação'

O cineasta mineiro Neville D'Almeida em sua casa, na ilha da Gigoia, na Barra da Tijuca Ricardo Borges/Folhapress

Guilherme Genestreti
Rio de Janeiro

Neville D'Almeida não morreu, não. Aos 77, ele continua bem vivo. "Querem me enterrar, mas não vou permitir", brada o cineasta mineiro, cercado de dois gatos e três cachorros (incluso o poodle Bob, vestindo uma malha) em sua casa na Gigoia, ilha lacustre na Barra da Tijuca.

Neville está inconformado. Faz duas décadas que nenhum de seus projetos é contemplado em edital de fomento.

Quarenta anos após emplacar a quinta maior bilheteria brasileira da história —"A Dama do Lotação"—, o cineasta rotulado como o "rei dos malditos" tem a carreira revisitada em documentário e pretende atualizar os temas do seu maior sucesso num novo longa, "A Dama da Internet".

"Rei dos malditos?", ele interrompe, ajustando o indefectível lenço no pescoço. "Que merda ser o rei dos malditos. Não sou maldito, sou é bem-aventurado."

Sua aventurança, que começa na contracultura sessentista, é contada em ", documentário de Mário Abbade exibido no Festival de Roterdã e no último É Tudo Verdade, no Brasil, mas sem previsão de estreia.

A obra é repleta de embates com a ditadura militar e com a que o retratado chama de "ditadura do gosto". "Fui do fodido ao consagrado, mas continuam achando que sou só aquele tarado", afirma, antes de irromper em gargalhada.

A biografia traz o início de carreira, em meio à geração do cinema marginal. Na época do desbunde, lembra a atriz Maria Gladys, viviam todos juntos no Rio, "queimando baseado, sempre com fumo bom".

 

O documentário lembra o cerco a "Jardim de Guerra" (1968), tido como o filme mais picotado pela censura (48 cortes), e o sumiço das cópias de "Piranhas do Asfalto" (1971).

O estouro veio em 1978, com "A Dama do Lotação", filme de ambições populares que abalava a caretice de um Brasil militar. Sete anos antes, após ler o conto homônimo de Nelson Rodrigues, Neville bateu à porta do autor. "Ele guardou o texto até que eu tivesse dinheiro para comprar os direitos."

Ambos escreveram o roteiro e escalaram Sonia Braga para viver Solange, moça suburbana e cheia de libido que se insinua para desconhecidos.

"É a primeira mulher do cinema brasileiro a escolher os homens com quem faz sexo", diz Neville. "Dama" foi o primeiro filme lançado em todos os estados, arrastou mais de 6,5 milhões aos cinemas e solidificou a imagem de Sonia como um símbolo sexual.

O documentário sustenta a ideia, contudo, de que a atriz se incomodou com a repercussão de um longa que a mostrava nua e no papel de uma mulher sexualmente voraz.

"Ela criou uma relação psicanalítica com o filme", diz Neville. "Sonia não precisa gostar de mim, mas eu queria que ela se amasse nesse papel." A Folha tentou contato com a atriz, que não respondeu até a conclusão desta edição.

A "Dama" seguiu-se "Os Sete Gatinhos", outra adaptação rodriguiana, sobre uma família oprimida pelo pai. Ali Neville extravasava na instrução dos atores. Na cena clímax, uma das atrizes espreme a cara de Lima Duarte com seus seios, outra vomita nele. "É, tavam bem doidas", ri o ator.

Nos anos 1980, seu "Rio Babilônia", um "La Dolce Vita" carioca, causou fuzuê com uma cena de "ménage à trois" na piscina. Culpa, crê o diretor, da "miséria sexual dos outros". "Ficam revoltados porque gostaram demais."

A censura nunca lhe deu folga. O cineasta passa dez minutos lendo à reportagem relatórios da polícia sobre suas obras: "Cortar a cena em que a personagem tira droga do violão", "cortar a cena em que o personagem abre os botões da calça". "Nenhum diretor sofreu tanto com isso", diz.

Ainda que já finda a ditadura, a década seguinte arrefeceu suas produções. Surgiu um sistema de financiamento calcado em editais públicos. "Aí a censura mudou. Agora ela é das comissões de seleção [dos editais]", afirma. "E há a ditadura do gosto, do gosto dos curadores de festivais."

Abbade tem palpites sobre o diretor ser tão malquisto. "Ele já falou mal de cineastas e de mostras. É uma metralhadora. E seus filmes são punidos pelo homem que ele é."

Mas, dos diretores de hoje, Neville não guarda críticas. Diz seguir os trabalhos de Beto Brant, Cláudio Assis ("muito bom"), Walter Salles, Karim Aïnouz, José Padilha ("excelente"), Anna Muylaert, Kleber Mendonça Filho... "Mas nenhum deles me procurou. Se eu fosse eles, procuraria."

O pouco caso, entretanto, não é unânime. O Instituto Inhotim (MG) mantém um pavilhão dedicado às "Cosmococas", instalações feitas por Neville e Oiticica em que retratos de celebridades são contornados por carreiras de cocaína. Já seu filme "Mangue-Bangue" (1972) está no acervo do MoMA de Nova York.

Neville arma um retorno em grande estilo e em sintonia com seu maior sucesso. Mas "A Dama da Internet" não é qualquer continuação. "O título é uma armadilha poética. Os superficiais vão achar que a mulher tem encontros pela internet, mas não é isso."

Agora, o sexo não é mais a via de libertação, mas a decorrência. "Se você tem grilos, você transa mal. Mas, se você tem libertação existencial, então o sexo bom vem como consequência", afirma.

O diretor aguarda a confirmação da atriz que viverá o papel-título, mas já tem na cabeça algumas cenas. Uma delas subverte o clássico momento em que Norma Bengell é largada nua, na praia, por um de seus amantes, em "Os Cafajestes" (1962), de Ruy Guerra.

Desta vez, Neville quer o oposto: uma mulher deixando para trás um homem, nu. "Para colocar os homens nos devidos lugares: a lata de lixo."

O cineasta espera que a toada feminista sirva para sacudir o universo tão masculino do cinema. "Está horrível esse cheiro de cueca usada."

Horrível também, segundo ele, é a falta de respeito ao cineasta veterano. "Só te valorizam se você estiver morto". O próprio Abbade conta que, quando procurava cópias digitalizadas de filmes de Neville, funcionários da Ancine (Agência Nacional do Cinema) lhe perguntaram se o cineasta já não tinha morrido.

Neville continua vivo.

E reclama: "Neville não é analgésico, não. Neville é navalha na carne."

 

Filmografia essencial de Neville D'Almeida

A Dama do Lotação (1978)

Na quinta maior bilheteria nacional, Sonia Braga vive uma mulher casada que só consegue encontrar prazer se insinuando para desconhecidos

Atriz Sônia Braga em cena do filme 'A Dama da Lotação' - Divulgação

Os Sete Gatinhos (1980)

Adaptação da peça de Nelson Rodrigues, traz Lima Duarte no papel de um pai de família que oprime as filhas, entre elas Arlete (Regina Casé)

Ator Lima Duarte foi o pai opressivo de uma família suburbana em 'Os Sete Gatinhos' - Divulgação

Rio Babilônia (1982)

Nos últimos dias do ano, um turista é guiado pela selvagem noite carioca; o longa traz uma controversa cena de ménage à trois na piscina

Atores Wilson Grey e Guara Rodrigues em cena do filme 'Rio Babilônia' - Divulgação

Matou a Família e foi ao Cinema (1991)

Alexandre Frota, Cláudia Raia e Louise Cardoso estão nesta trama sobre um sujeito que assassina os próprios pais e se refugia no cinema

Aatriz Márcia Rodrigues em cena do filme 'Matou a Família e Foi ao Cinema' - Divulgação

Navalha na Carne (1997)

Vera Fischer interpreta a prostituta Neusa Suely, que ronda pelo baixo meretrício na adaptação da peça homônima de Plínio Marcos

A atriz Vera Fischer em cena do filme 'A Navalha na Carne'

A Frente Fria que a Chuva Traz (2015)

Chay Suede, Bruna Linzmeyer e Johnny Massaro são jovens que se divertem em meio a drogas e favores sexuais numa laje na favela

Bruna Linzmeyer em cena do filme 'A Frente Fria que a Chuva Traz' - Divulgação
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