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Autor revisa história da ficção científica e adianta seu nascimento em dois séculos

Reforma Protestante abriu caminho para o gênero, segundo o britânico Adam Roberts

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São Paulo

O crítico e autor britânico Adam Roberts lança no Brasil pela Seoman "A Verdadeira História da Ficção Científica - Do Preconceito à Conquista das Massas", uma obra de 700 páginas na qual defende que o gênero nasceu muito antes de Júlio Verne, H. G. Wells ou Mary Shelley.

Segundo ele, a FC (ficção científica) é fruto da Reforma Protestante, que abre o pensamento humano para as ciências e relativiza os mandamentos bíblicos do catolicismo.

A primeira obra do gênero, diz Roberts, é "Somnium" do astrônomo Johannes Kepler, escrito por volta de 1600, mas lançado postumamente em 1634. No livro publicado no século 17, um sonhador vai à Lua carregado por um demônio e conhece seres das duas faces do satélite.

O livro de Roberts detalha ainda obras de FC escritas por Cyrano de Bergerac e Voltaire (leia na cronologia).

Ele diz que seus pares da crítica não abraçaram sua ideia de forma entusiasmada, preferindo manter a ideia clássica de que o gênero nasceu no século 19.

"A Verdadeira História da Ficção Científica", entretanto, vai muito além de apenas estabelecer uma nova origem para o gênero. Isso é feito em 140 páginas da obra.

Nas restantes, Roberts conta como as histórias sobre tecnologia ganharam popularidade nos séculos 18 e 19, chegaram às telas no 20 e traça um panorama do que está acontecendo com elas agora, no 21.

Leia a seguir trechos da entrevista com o autor.

 

Como o sr. teve essa ideia tão original?"‚"Tão original" é uma forma polida de dizer "excêntrica", não?

Mas é verdade. Em geral, os historiadores localizam o início da ficção científica em 1818, com "Frankenstein", ou com Júlio Verne e H. G. Wells no final do século 19. Ou ainda na explosão da literatura pulp americana a partir de 1926. Outros falam das novelas gregas antigas.

O problema de todas essas argumentações é que existe material demais que podemos chamar de ficção científica nos séculos 18 e 17: viagens pelo espaço, robôs, invenções tecnológicas, especulações futurísticas etc.

Busquei identificar o momento em que o que hoje chamamos de FC se separou da literatura fantástica. E acredito que isso tenha acontecido na Reforma.

O sr. cita a morte de Giordano Bruno na fogueira, em 1600, como fundamental.

Acho que foi sintomático. Giordano Bruno desafiou a ortodoxia católica com uma visão de universo infinito, e foi queimado na fogueira.

As disputas culturais nessa época eram um fenômeno maior do que apenas um homem, mas ele resume o cabo de guerra: um lado tentando preservar o velho conceito mágico-religioso do universo e o outro querendo abrir o cosmos para a ciência no sentido moderno. E tentando substituir o sublime mágico do catolicismo medieval pelo sublime material do Renascimento e da investigação científica.

Como o sr. chegou à conclusão de que o gênero era anterior ao século 19?

Eu costumava achar que a FC tinha começado com o "Frankenstein" de Mary Shelley. Inclusive, o primeiro livro crítico sobre ficção científica que escrevi argumentava nesse sentido. Mas, quando minha editora me chamou para escrever essa obra mais extensa, tive que olhar mais detidamente o assunto. E pensar o que fazer com tantos exemplos de FC que existiam antes de Mary Shelley. Foi isso que me fez reconsiderar opiniões.

E o que mudou na FC com a chegada de Júlio Verne e H. G. Wells?

Por anos, a FC havia sido um gênero interessante, mas de pequena escala. Com eles, o gênero ganhou uma popularidade inédita. Além disso, entre as décadas 1870 e 1930, novas tecnologias de produção de livros e de distribuição contribuem para disseminá-los.

Seu livro teve uma primeira edição em 2006 e, há dois anos, uma grande ampliação, que está sendo lançada no Brasil agora. Como essa revisão do nascimento da FC está sendo vista pelos seus colegas?

Eu diria que que a maioria dos acadêmicos e estudiosos de literatura do gênero continua... não convencida.

A Verdadeira História da Ficção Científica

Autor: Adam Roberts. Tradução: Mário Molina. Ed. Seoman. R$ 75 (704 págs.)


Uma cronologia para a ficção científica

80 - Primeiras novelas gregas que tratam de viagens à Lua e dialogam com a ciência da época são escritas por Plutarco e Antônio Diógenes; apenas fragmentos sobreviveram

180 - Luciano de Samósata escreve 'A História Verdadeira', que narra uma jornada marítima que termina nos céus e envolve os gregos numa guerra entre povos da Lua e do Sol; para alguns, não é ficção científica porque Luciano se concentra no aspecto farsesco, e não tecnológico da trama

Johannes Kepler
O astrônomo Johannes Kepler - Reprodução

1600 - Primeira edição completa de 'Somnium', do astrônomo Johannes Kepler, aparece publicada. É o primeiro livro 'inequivocamente' de ficção científica, na opinião do autor Adam Roberts. Nele, um homem sonha que viaja à Lua e conhece dois povos, um na parte clara e outro na parte escura do satélite

1626 - Charles Sorel lança o primeiro de uma série de livros nos quais fala de: viagens à Lua, mulheres metálicas que sabem todas as línguas do mundo, seres de metal que atuam como servos, raça de indivíduos com pele transparente e órgãos à vista e diversos mecanismos para comunicação à longa distância

1630 - Cyrano de Bergerac escreve duas novelas de ficção científica, nas quais vai à Lua de foguete e é mantido num zoológico. Ambas só sairão após sua morte, em 1655

1730 - Inspirado por 'As Viagens de Gulliver', Voltaire escreve 'Micrômegas', que será lançado 20 anos depois. Fala de um habitante de Sirius com 5 km de altura que vem à Terra, levanta um navio no oceano e se espanta que os 'insetos' a bordo possuam inteligência

1755 - Texto inglês anônimo, 'Viagem ao Mundo no Centro da Terra' situa sociedade utópica de vegetarianos que respeitam muito os animais no interior do globo terrestre

1818 - Mary Shelley publica 'Frankenstein', citado por muitos autores como o ponto de partida da ficção científica. No livro original, não há descrição contundente de que a criatura é formada de pedaços de cadáveres; talvez fosse um autômato, esclarece Adam Roberts

1841 - Com 'Napoleão Apócrifo', Louis Geoffroy inventa o subgênero da realidade alternativa: em seu livro, Napoleão invade a Rússia com sucesso em 1812, conquista a Inglaterra e os EUA e conduz o mundo a uma era dourada de avanço tecnológico, que inclui carros voadores

1865 - Júlio Verne, o mais popular escritor de ficção científica da história, escreve seu terceiro livro, 'Da Terra à Lua', no qual um grupo concebe uma nave que será lançada de um gigantesco canhão

1895 - H. G. Wells, o outro grande autor clássico do gênero, publica sua primeira obra de FC, 'A Máquina do Tempo', no qual um viajante avança para ver a humanidade em situações terríveis

‘Viagem à Lua’, de George Méliès - Reprodução

1902 - O cineasta George Méliès produz o filme mudo 'Viagem à Lua', inspirado por Júlio Verne

1926 - O editor Hugo Gernsback, que lança revistas pulp com contos do gênero, cria o termo 'cientificção', alterando-o mais tarde para o atual 'ficção científica'; a era das revistas segue até 1960

'Metrópolis', de Fritz Lang - ® Bettmann/CORBIS

1927 - Principal filme de FC da primeira metade do século, 'Metrópolis', de Fritz Lang, é ambientado numa cidade dividida verticalmente entre trabalhadores nas fábricas subterrâneas e a classe dominante nos arranha-céus

1932 - 'Admirável Mundo Novo', de Aldous Huxley, se passa em 637 depois de Henry Ford (que criou o método de produção em linha para o automóvel) e apresenta uma sociedade dividida em alfas, betas etc. e que tomam a droga soma, fornecida pelo Estado

1938 - Orson Welles lê trechos do livro 'A Guerra dos Mundos', de H. G. Wells, no rádio e apavora cerca de 1 milhão nos EUA, que acreditaram se tratar de uma invasão alienígena real

1949 - George Orwell escreve a distopia futurista '1984', uma extrapolação dos regimes totalitários europeus das décadas de 1930 e 1940

1951 - Sai o primeiro volume da trilogia 'Fundação' de Isaac Asimov, o mais famoso autor do gênero no século 20; com ele, estabelece-se a chamada FC hard: narrativas lineares com heróis resolvendo problemas em um ambiente espacial ou tecnológico

1953 - Arthur C. Clarke lança sua primeira novela, 'O Fim da Infância', na qual alienígenas chegam à Terra para guiar crianças numa transcendência cósmica que porá fim à humanidade

1961 - 'Um Estranho numa Terra Estranha', de Robert Heinlein, com um messias enviado por marcianos inaugura a new wave da FC: menos preocupação com o conteúdo e mais com o estético. Quatro anos depois, Frank Herbert lança 'Duna'

‘Blade Runner’ (1982), de Ridley Scott - Divulgação

1968 - Philip K. Dick escreve 'Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?', que viraria o filme 'Blade Runner' (1982), de Ridley Scott, no qual um caçador de androides não tem certeza se as pessoas ao seu redor são reais ou artificiais

1968 - '2001: Uma Odisseia no Espaço', de Stanley Kubrick, é o filme que tirou o gênero da classe B de Hollywood e o elevou ao status de arte; um monólito vem à Terra na aurora dos tempos e dá um empurrãozinho à inteligência humana. Milênios depois, os humanos o redescobrem na Lua e em Júpiter

1973 - Thomas Pynchon lança 'O Arco-Íris da Gravidade', uma desconcertante comédia sobre sexo e foguetes V-2 na Segunda Guerra Mundial

1977 - 'Guerra nas Estrelas' abre caminho para uma série de blockbusters no cinema, como 'Alien - O Oitavo Passageiro' (1979), 'E.T. - O Extraterrestre' (1982) e 'O Exterminador do Futuro' (1984)

1980 - Sai o primeiro volume de 'O Livro do Novo Sol', de Gene Wolfe; o protagonista é um torturador aprendiz em um mundo que mescla sociedade medieval com futurista

1984 - William Gibson marca o cyperpunk com 'Neuromancer', que mistura um enredo noir, hackers, megalópoles e violência

1993 - O game de computador 'Doom', no qual um fuzileiro espacial enfrenta demônios, torna-se padrão para jogos de tiro em primeira pessoa

Séc. 21 - Diversos subgêneros seguem em andamento, como os mundanos (FC dentro do Sistema Solar sem viagem mais rápida que a luz), new weird (amantes da FC com fantasia) e new space opera (com pesquisa científica rigorosa)

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