Descrição de chapéu

Não cabe a um crítico julgar o que vai entrar ou não em um livro

Exigir que uma obra fale de questões sociais de acordo com ideologia de resenhista é anular papel da literatura

Martha Batalha
São Paulo

Caio Fernando Abreu dizia que no Brasil o escritor não é criticado. É acusado. Desta vez o acusado foi meu romance, “Nunca Houve um Castelo”. Em artigo neste jornal (3/7), o resenhista condena o livro por celebrar a classe média alienada e por não realizar uma denúncia social.

Respondo porque houve um profundo desentendimento do romance, e porque exigir que um livro fale de questões sociais de acordo com a ideologia do resenhista é anular o papel da literatura, é destruir uma expressão de arte em nome de um projeto que reduz e empobrece a escrita.

Para quem não leu, a parte principal da trama retrata o cotidiano de uma família de classe média carioca nos anos 1960 e 1970. Estela, a protagonista, é uma mulher deslumbrada pelo sonho da ascensão social, pelo ideal de vida que se resume em ter o marido perfeito e o sofá da moda. Uma realidade que se mostra insustentável. Enquanto Estela se esforça em mantê-la, o país e o casamento se desintegram.

Segundo o resenhista, o narrador peca por não subir o morro ou entrar no quarto da empregada. O personagem da empregada, segundo ele, atravessa a narrativa sem ganhar voz. Mas a ausência de voz e o modo como ela internaliza a própria dominação ao adorar a patroa falam muito sobre a diferença de classes. 

Retrato da escritora Martha Batalha - Zô Guimarães/Folhapress

E há uma cena no banheiro da empregada em que Tavinho, marido de Estela, toma banho no minúsculo chuveiro. Tem nojo de fiapos de cabelo grudados na base da cortina de plástico e reclama com a mulher, dizendo que “até para as crianças o lugar era desumano”. É preciso humor e discernimento para enxergar a ironia da cena.

O livro também foi criticado por dizer que uma personagem “colocava ruge para fritar os bifes”. Segundo o resenhista, a frase tem a profundidade de revista de comportamento. 

Há duas interpretações para o trecho. A primeira, bastante simples, é que se trata de um recurso de humor. A segunda é que colocar ruge para fritar os bifes revela que a autoconfiança das mulheres nos anos 1950 passava pelo domínio de um dos únicos lugares a que tinham livre acesso e arbítrio: a cozinha.

Entender o ato como frívolo é depreciar o já restrito espaço feminino. O detalhe é uma sutileza, por meio do qual procuro mostrar as limitações das mulheres da época.

Em outro momento, a narrativa foi condenada por não usar o discurso indireto livre. Eu não sabia que esse era um pré-requisito para escrever um romance. Mas ele está ali e passou despercebido pelo resenhista, como quando, sentada no sofá, Estela relembra os erros das últimas décadas.

O resenhista também afirma que desdenho do Pasquim, o que não é verdade. Convivi por muitos anos com alguns dos fundadores do Pasquim. Li todos os exemplares do jornal, reeditei o conteúdo em livro, o que muito me orgulha.

No breve trecho a que ele se refere, os jornalistas se chamam de bicha. Não fiz a menção em tom acusatório, mas para mostrar que mesmo no cerne da elite intelectual do país havia preconceitos. Ser julgada por isso soa mais como patrulha ideológica do que como crítica literária.

Ainda segundo o resenhista, o livro se apoia numa sucessão de eventos sem maiores complexidades, o que fiz propositadamente, para o leitor refletir sobre o relativismo da passagem do tempo. 

Em outro momento, sou criticada por falar de um país que não se lembra da chacina da Candelária. Penso que não cabe ao crítico julgar o que entra ou não em um livro. A decisão sempre será do autor, que deve ter total liberdade criativa.

Não sei exatamente em que ponto da história recente a leitura de uma obra se tornou tão literal —se um personagem é raso é porque o livro é raso, se a empregada não tem voz é porque a autora é elitista. Não sei em que ponto passamos a ler assassinando as entrelinhas. Insistir neste caminho é matar a criatividade.

Romancista, é a autora de “Nunca Houve um Castelo” (Cia. das Letras). R$ 44,90 (256 págs.)

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