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Estava a escrever uma coisa que era uma bomba, diz Isabela Figueiredo

Nascida em Moçambique, autora rompeu acordo de silêncio ao publicar 'Caderno de Memórias Coloniais'

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São Paulo

Quando Isabela Figueiredo, 55, lançou seu "Caderno de Memórias Coloniais" em Portugal, em 2009, ouviu os piores insultos. "Diziam que eu era uma traidora à memória do meu pai, mentirosa, que pertencia a uma classe social baixa e era puta, claro."

Como ousava uma "retornada" denunciar o racismo português, questionar o mito da mansuetude do colonialismo luso? Os "retornados" eram os mais de 600 mil portugueses que viviam na África e voltaram para Portugal após a independência das colônias portuguesas, entre 1974 e 1975.

Fugindo da vingança dos colonizados em Angola e Moçambique, deixaram tudo para trás e chegaram a um país onde sofreram preconceito e dificuldade para se reintegrar.

Por muito tempo, vigorou um acordo tácito entre os retornados: não se fala sobre a exploração dos negros pelos portugueses na África. Vamos focar os aspectos idílicos de Moçambique e Angola.

Pois Isabela, que nasceu em Moçambique e migrou para Portugal aos 12 anos, rompeu esse acordo ao publicar suas memórias sobre a vida colonial. Na obra, seu pai personifica o racismo dos colonos.

O livro foi um sucesso, passou a ser estudado em universidades, está a ser traduzido para o alemão e sai agora no Brasil pela editora Todavia.

Isabela, que é autora do premiado "A Gorda", integra mesa da Flip neste sábado (28).

 

Como foi a reação ao seu livro?

O que começou a aparecer nas livrarias no final dos anos 90 e início dos 2000 foram relatos coloniais muito idílicos, cor de rosa, com fotografias de vida ao ar livre, vida social, tudo muito lavado, muito limpo. E foi nessa altura que eu resolvi escrever o “Caderno de memórias coloniais”.

Tive consciência de que estava a escrever uma coisa que era uma bomba, que os retornados me iam odiar. Percebi que estava entrando em um território proibido. Não aconteceu nada de grave, mas os fóruns de discussão, os artigos de jornais sobre o caderno de memórias coloniais estão cheios de insultos. Nos comentários de leitores em artigos, há centenas de acusações soezes, insultos muito maus.

Até hoje persiste essa reação, de que você cometeu uma traição aos retornados?

Sim, sim, principalmente entre os mais velhos. Esse foi o discurso dos meus pais. Toda a vida eles falaram dessa maneira dos negros, eu ouvi isso na minha casa. Mas os pais, os retornados, não admitem que falam daquela maneira, que tenha sido verdade. Fazem uma lavagem do passado. Mas eu só quis descrever o que eu testemunhei. É claro que você pode dizer: "As pessoas não eram todas assim". E eu digo, não, não todas. Mas a maioria era assim.

Você fala sobre o mito da mansuetude do colonialismo português. Isso ainda é muito presente?

Sim. No dia a dia, a ideia é sempre de que nós fomos colonizadores diferentes dos outros, não fomos tão frios e implacáveis quanto os ingleses, belgas e alemães. Eu penso que fomos iguais.

O diferente era uma capacidade de mistura, embora o branco sempre mantivesse uma posição de supremacia. Havia uma capacidade de se misturar e um convívio no mesmo espaço, partindo do princípio tácito de que o lugar dos brancos era privilegiado.

Você diz no livro que tudo bem conviverem, desde que os negros sempre agradecessem e sorrissem...

Exato, podíamos estar todos juntos no mesmo lugar, mas o negro tinha que saber que não estava no nosso nível. Por exemplo: quando eu era pequena, na cidade de Lourenço Marques [atual Maputo], os brancos entravam nos ônibus e se sentavam à frente, e os negros atrás. Isso não estava escrito em lado nenhum, entende...

Por que você só publicou o livro depois que seu pai morreu?

Foi mesmo por amor ao meu pai. A exposição que faço do meu pai neste livro, não podia fazê-lo enquanto ele era vivo.

Meu pai é o grande amor da minha vida. É um pouco freudiano até, os homens que me atraem fisicamente são parecidos com meu pai, ele é realmente uma figura muito importante para mim.

Eu sou filha única e fui extraordinariamente bem educada pelo meu pai e pela minha mãe, com muito cuidado emuito amor, uma criança que não tem memória de violência em casa, de discussão entre pai e mãe, tive uma infância pacífica. Portanto meus pais são um território muito sagrado para mim e eu não queria escrever sobre isto com meu pai vivo.

Depois de adulta, eu tinha muitos conflitos políticos com meu pai e nós discutíamos violentamente. Nos piores momentos, eu dizia que ele era um fascista, ele dizia que eu era uma comunista. Mas em alguns aspectos, meu pai estava à frente de seu tempo, era um feminista, acreditava que as mulheres tinham de se tornar independentes, tinham de estudar.

Então a realidade é que meu pai era um racista, um fascista, mas também era um feminista.

Quando disse ao seu pai que o achava racista?

Um dos nossos mais violentos confrontos teve a ver com isso, de eu ter dito que ele não passava de um racista. E ele disse que eu não percebia nada da vida, que eu ainda ia ver que ele tinha razão —mas não, ele não tinha.

Você passou alguns dias no Brasil no ano passado. Sentiu marcas do colonialismo aqui?

Senti que uma parte do colonialismo português em Moçambique existe e resiste em São Paulo. A divisão de bairros de brancos e bairros de negros completamente demarcados; senti-me de volta ao tempo colonial, com a observação que fiz que a diferença da discriminação racial associada a uma diferença cultural. Honestamente, foi perturbador para mim.

Em "A Gorda", faz o que se costuma chamar de autoficção?

Eu realmente não gosto de rotular. É uma narrativa, um romance, e todo romance parte da experiência do eu.

Você relatou que era muito gorda, sentia-se excluída, e fez cirurgia de redução de estômago —como a Maria Luísa do livro. Há crueldade contra pessoas gordas hoje?

Existe uma enorme crueldade contra as pessoas gordas, elas são consideradas deficientes, e existe uma enorme crueldade contra as pessoas deficientes, como se porventura elas pudessem ser culpadas de uma incapacidade.

Existe uma crueldade generalizada contra tudo que é diferente, que sai do padrão, que não faz parte do modelo cultural que nos é metido na cabeça a partir do momento em que nascemos. Assim que nascemos, inicia-se uma construção cultural artificial.  Esse é um assunto muito importante para mim.

Eu tenho como propósito nos próximos anos escrever sobre esses modelos que nos são impostos e são totalmente artificias. Quando fui para a Índia, eu fui extraordinariamente notada por minha beleza física, por ser gordinha. Bem alimentada e rica. A gordura é um fator de beleza. O que muda? A cultura muda, a realidade não muda.

O que mudou depois que você fez a redução de estômago?

Eu precisava perder peso, porque ele estava a interferir na minha vida, estava com 120 kg e tenho 1,64 m. E sentia-me limitada, minha saúde, minha agilidade. Com a cirurgia, perdi 40 kg. Continuo gordinha, mas eu ganhei autoestima. É mesmo muito bom.


Isabela Figueiredo, 55

Nascida em Lourenço Marques (hoje Maputo), Moçambique, é tida como uma das principais escritoras portuguesas contemporâneas

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