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Poetisa portuguesa Adília Lopes apresenta o erudito e o que vive ao rés do chão

'Um Jogo Bastante Perigoso' é lançado no Brasil 33 anos após a sua primeira publicação em 1985

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A portuguesa Adília Lopes, em sua casa, em vídeo gravado por Joana Dilão para o projeto jogosflorais.com - Reprodução
PAOLA POMA

Um Jogo Bastante Perigoso

  • Preço R$ 35 (56 págs.)
  • Autoria Adília Lopes
  • Editora Moinhos

Livro de estreia da poetisa portuguesa Adília Lopes, "Um Jogo Bastante Perigoso" acaba de ser lançado no Brasil pela editora Moinhos, 33 anos após a sua primeira publicação em 1985.

Este intervalo talvez instigue o leitor a fazer a pergunta: a que tipo de jogo a autora se refere? E acrescentar: qual o seu perigo?

Híbrido de memória pessoal e releituras, a autora avisa que o caminho escolhido é o da contracorrente —"Os poemas que escrevo/são moinhos/que andam ao contrário/as águas que moem/os moinhos/que andam ao contrário/são as águas passadas"— e num movimento incessante macera, tritura, rumina e dissolve as personagens de Esther Greenwood (Sylvia Plath), da amiga de Mlle Vinteuil (Proust); os poetas Mário de Sá-Carneiro, Friedrich Rückert, Camões; as imagens da "maja desnuda" de Goya e das "pessoas do ajuntagente" dos quadros de Rubens e as vozes circunstanciais de Anabela, Maria Bárbara, Irene e Magda em uma pessoalidade mal disfarçada que transita entre a dor —"o resto é um coração/que se abre com a unha/mas hoje não tenho unhas"—, a solidão —"Depois de lamber cuidadosamente/as minhas feridas"- e algum erotismo oscilante— "(só lhe toquei uma vez/sem querer/e pedi-lhe automaticamente desculpa)/mas porque com a Magda/ não tinha prazer nenhum."

Mas o jogo de vozes não para por aí. O universo infantil surge como uma espécie de autoficção que se cola em meio a outras personagens.

Papel, tesoura e dobradura são instrumentos de punição, o Luna Parque transforma-se em "um sítio triste" e a presença da mãe reforça os erros de uma educação de opressão e ausência de diálogo, já que "a maior parte dos acidentes são devidos/a prudência exagerada/ se a criança não fosse pela mão da mãe".

Adília Lopes mostra as suas cartas e, irônica e constantemente, muda de posição. Ocupando um distanciamento estratégico, denuncia seus adversários: seja a rapariga —"que não usa de considerações primárias" e "foi por isso que ela conseguiu/aquele lugar de secretária do diretor/da firma Amantes & Amantes, Lda."—, seja a sociedade anestesiada pelo consumismo frenético —"o problema do mundo actual/.../é ser um mundo sem sobremesa/é o mundo da papinha feita/quando a papinha não está/feita faz-se/uma anestesia local ou geral...".

Se este procedimento formal (pastiche) parece provocar o riso fácil e o coloquialismo da linguagem sugerir uma literatura menor, é justamente aí que mora o perigo.

O volume das vozes em constante tensão, o efeito das intertextualidades literárias e plásticas, a forma dos poemas que conjugam em si pequenas narrativas revelam o substrato de um pensamento essencialmente radical e atento ao mundo.

Por isso, aproximá-la a Madonna, ainda que seja de forma elogiosa, é perder o lance, retroceder na jogada, errar o tom. Adília Lopes é poetisa pop, como ela mesma afirma, porém repudia o consumismo, o mundo midiático, a exposição, o sucesso a qualquer preço, tudo o que a cantora americana representa.

Saber ler Adília Lopes é necessariamente saber ler a tradição e o contemporâneo, o que há de mais erudito e o que vive ao rés do chão, daí a necessidade de o leitor saber partilhar as regras do jogo, do contrário o perigo estará sempre à espreita.

Paola Poma
É professora de literatura portuguesa na Universidade de São Paulo

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