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Para Naipaul, história atua como força literalmente global

Entre os grandes do século 20, escritor morto no sábado teve a mais ampla perspectiva sobre o mundo

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O escritor V.S. Naipaul em sua casa, na Inglaterra.
O escritor V.S. Naipaul em sua casa, na Inglaterra - Chris Ison/AP
Carlos Graieb
São Paulo

Em 1999, fiz por telefone uma entrevista árdua com V. S. Naipaul. Seus dois livros de viagens por países islâmicos, “Entre os Fiéis” (1975) e “Além da Fé” (1995), haviam sido lançados no Brasil. O fundamentalismo era muito discutido na imprensa e a tese de Naipaul, em especial no segundo livro, era contundente: o Islã é uma fé imperialista, que faz tábula rasa da história das civilizações que conquista.

Esperava-se que fosse uma conversa de tom político. Mas isso despertou a resistência do escritor: “Eu penso em termos concretos. Eu não recorro às mistificações da teoria, da economia, da política”.

Conhecido por abandonar jornalistas de maneira brusca, Naipaul, de alguma maneira, falou melancolicamente por meia hora sobre a perspectiva de que sua obra se perdesse no futuro.

“A sociedade diretamente ligada ao escritor mantém sua literatura viva. Eu venho de uma comunidade muito pequena. Não haverá ninguém para manter minha literatura viva quando eu morrer, a menos que meu ponto de vista se mostre atual e necessário.”

Naipaul morreu no sábado, aos 85, e a questão da permanência de sua literatura está na pauta. O fato de haver sido escrita em inglês, uma língua universal, e a excelência áspera de sua prosa (reconhecida em 2001 com o Nobel) são argumentos óbvios em favor da sobrevivência. Mas o próprio autor não acreditava que essas fossem bases sólidas o bastante. Isso porque a impermanência, a precariedade e a desordem do mundo são o tema de seus livros.

Naipaul nasceu em uma família de raízes indianas, na ilha caribenha de Trinidad, sob o domínio colonial dos britânicos. A pergunta que repetia continuamente em seus textos era sobre como encontrar um caminho no mundo a partir dessa origem complexa, como “encontrar o centro”.

O escritor britânico V. S. Naipaul exibe medalha recebida ao ser premiado com o Nobel de Literatura
O escritor britânico V. S. Naipaul exibe medalha recebida ao ser premiado com o Nobel de Literatura - Jonas Ekstromer/AFP

O fato de que uma multidão de pessoas ainda viva sem raízes firmes, à deriva, talvez seja o argumento mais forte em favor da necessidade de continuar a lê-lo.

Naipaul primeiro confrontou esse problema de forma estritamente pessoal. “Eu temia não ser nada, não ser ninguém”, dizia ele. Mudar-se para estudar na Inglaterra, e sobretudo escrever, foram os remédios para essa condição. Depois, sua visão se alargou e ganhou profundidade, para abarcar a história de sua família e de seu país.

O romance “Uma Casa para o Sr. Biswas”, seu quarto livro, é a obra-prima dessa fase de sua carreira —que também compreende livros como “O Massagista Místico” (1957) e “Miguel Street” (1959). 

Após a experiência na Inglaterra, Naipaul começa a viajar pelo mundo. Esse foi o segundo alimento de sua obra, cujo foco se abre ainda mais para outras regiões, como a Índia, a África e a América do Sul. Essa fase atinge seu ápice com “Uma Curva no Rio”, de 1979, sobre a experiência de um comerciante descendente de indianos em um país sem nome da África, onde ele primeiro encontra a velha cultura dos colonizadores, e depois assiste à revolução que instala um ditador.

Esses livros estabelecem Naipaul entre os grandes escritores da segunda metade do século 20, como aquele que tem a mais ampla perspectiva sobre o mundo. Aquele para quem a história atua como uma força literalmente global.

“Uma Casa para o Sr. Biswas” é um livro cômico. Entre ele e “Uma Curva no Rio”, Naipaul vai se tornando mais pessimista e seu humor, quando presente, amargo. 

Para muitos críticos, ele havia adotado o ponto de vista negativo e escarninho dos colonizadores sobre as regiões do mundo que haviam conquistado. Seus livros, de fato, falam de sociedades “feitas pela metade”. 

Os homens são “mímicos”, que repetem sem pensar ideias que não pertencem a eles ou ao seu lugar. Mas Naipaul rejeitava enfaticamente esse tipo de crítica. “Eu não julgo, eu descrevo”, dizia ele. Talvez fosse mais correto dizer que seu julgamento se atinha aos indivíduos, não aos grupos.

A partir dos anos 1990, Naipaul se dedica cada vez mais aos livros de viagem, e consolida o que chama de “narrativa falada”.

É um método que tem a observação como motor, mas que abre espaço para a reflexão. Ele, que apreciava estoicos como Marco Aurélio, parece almejar um tom de sabedoria duramente conquistada pela experiência. 

“Nós nascemos cegos como bonecos, e gradualmente começamos a enxergar”, disse ele em sua entrevista de 1999. “Toda a minha carreira de escritor foi sobre isso: sobre aquilo que se ganha e se perde quando se começa a ver.”

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