'Queermuseu' alardeia seu status de maldita às vésperas de sua reabertura

Fechada um ano atrás diante de censura, mostra é reinaugurada neste sábado (18) no Rio

Silas Martí
Rio de Janeiro

​O canto dos pássaros no bosque em volta do Corcovado quase faz esquecer todo o estrondo causado pelas obras de arte juntas ali.

Um ano depois de ser censurada, a exposição "Queermuseu" será reaberta neste fim de semana nas cavalariças do Parque Lage. Restaurados, os estábulos à sombra do Cristo Redentor voltaram a ostentar singelas fachadas cor-de-rosa para a reencarnação do evento que despertou protestos de uma série de grupos políticos e religiosos.

Quando reunidos pela primeira vez no Santander Cultural, em Porto Alegre, esses trabalhos foram acusados por militantes conservadores de fazer apologia da pedofilia e da zoofilia, quando não enquadrados como blasfemos.

Toda essa histeria, amplificada pelas redes sociais, então fez o espaço patrocinado pelo banco interditar a exposição no centro da capital gaúcha.

No rastro da controvérsia, o Museu de Arte do Rio chegou a oferecer suas galerias às obras despejadas do velho endereço, mas a ideia logo esbarrou na oposição do prefeito carioca Marcelo Crivella.

Foi então que o Parque Lage entrou na jogada. A escola de artes visuais instalada num antigo palacete burguês, órgão do governo estadual, desafiou a prefeitura e comandou uma vaquinha virtual para receber as mais de 200 obras de arte no centro da discórdia.

Numa das maiores campanhas dessa natureza na história do país, os produtores ali juntaram mais de R$ 1 milhão para remontar a mostra.

"Não é dinheiro público nem de uma empresa tentando pegar carona na mídia que isso traz", conta Fábio Szwarcwald, diretor do Parque Lage. "Era a única forma de legitimar todo esse movimento quando a gente viu uma necessidade real de lutar contra a censura."

O dinheiro que sobrou da campanha iniciada em pleno Carnaval, com o Rio às vésperas de uma intervenção federal que dura até agora, foi para o restauro das cavalariças e ainda reforçou a segurança.

Quase 20 homens e dezenas de câmeras estarão de olho no público que circular pelas alas da exposição anunciada com um letreiro de neon na entrada. Outra empresa contratada pela escola faz vigilância online, protegendo o espaço de ataques via redes sociais.

Enquanto isso, a oposição do lado de fora só aumenta. Uma semana antes da abertura, o pastor Silas Malafaia ainda pediu —sem sucesso— às autoridades que proibissem a mostra a menores de idade.

Mesmo Szwarcwald, o diretor do espaço, chegou a ser exonerado e readmitido às vésperas do evento —ele diz que o episódio não tem a ver com a mostra e que o imbróglio se deu por uma divergência sobre questões de gestão.

Mas o que fica dessa batalha é uma dúvida. O que tanto querem e temem os defensores e os detratores da mostra?

Na ressaca do confronto, a reencarnação de "Queermuseu" é uma exposição deslumbrada com o próprio fracasso. Enquanto se vangloria de ter sido fechada antes da hora, a temperatura política impede discussões mais aprofundadas sobre seus méritos sem que isso vire disputa moral.

Mesmo que a ferida deixada pela censura mobilize paixões, ela não faz desse recorte de obras o suprassumo da contravenção nem "barra o avanço do fascismo e do fundamentalismo" no país, como quer Gaudêncio Fidelis, o curador por trás da exposição.

Entre as peças mais controversas, uma tela de Adriana Varejão retrata uma gueixa transando com um escravo, um rapaz penetrando uma cabra e dois garotos brancos num ato sexual com um rapaz negro, nada que Bosch não teria pintado lá no século 15.

Outra tela de Bia Leite, em que meninos sorridentes aparecem com os dizeres "criança viada", e uma série de representações de Jesus nos quadros de Fernando Baril parecem mais cincunscritos ao campo da ironia e da sátira do que da suposta militância queer antirreligiosa, não que esta, aliás, devesse ser vetada.

Baril pintou ainda um quadro em que um homem parece vestir o corpo de outro, bem mais musculoso —o detalhe é que ele está de salto agulha e estacas atravessam seus pés, pregados no chão como os de Cristo fincados na cruz.

No espaço conhecido como a capelinha das cavalariças, está outra obra dessa vertente católico-iconoclasta. Antonio Obá, artista que se exilou depois de sofrer uma série de ameaças por ralar uma estátua da Virgem até virar pó numa performance, mostra ali hóstias em que gravou nomes de partes menos sagradas do corpo, como vulva, lábios e vagina.

Uma ala inteira da mostra, aliás, quase lembra um açougue. Lá estão trabalhos que destacam em closes despudorados detalhes anatômicos específicos ou objetos com forte semelhança a vaginas, pênis, seios e afins.

Nem todas essas obras —de Alair Gomes, Cibelle Cavalli Bastos, Erika Verzutti, Gilberto Perin— tratam de desejo erótico ou queer. Algumas são puras abstrações, mas é a mão pesada tanto dos organizadores da mostra quanto de seus detratores que enxergam nelas algo excitante ou condenável para além da superfície.

Todo o pecado que dizem transbordar de "Queermuseu", no fundo, parece estar na cabeça de poucos. Dito isso, há momentos belos e outros desastrosos na mostra. Mas é uma vitória que ela venha a público em vitrine mais exuberante depois do furdunço.

Ou a "reparação de um erro", nas palavras de Ulisses Carrilho, um dos curadores do Parque Lage. "Esse processo de censura é um ato de higienização da cultura", ele afirma. "Isso faz parte de uma engenharia mais complexa. Os políticos farão política, mas há outras formas de atuar. Reabrir uma exposição censurada é fazer política."

Mas isso pode falhar. Uma obra de Leonilson, um grande quadrado de tecido branco translúcido, traz o diagnóstico nas bordas. Nelas, o artista escreveu que não poderia mudar o mundo "porque os deuses não permitem qualquer competição com eles".

Queermuseu

  • Quando Abre no sáb. (18). Seg. a sex., das 12h às 20h. Sáb. e dom., das 10h às 17h. Até 16/9.
  • Onde Parque Lage, r. Jardim Botânico, 414, Rio de Janeiro
  • Preço Grátis
  • Classificação 14 anos
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