Descrição de chapéu

Com fusão afetiva de narrativa e crítica, autora italiana celebra Caetano Veloso

No livro 'Caminhando Contra o Vento', Igiaba Scego apresenta uma leitura renovada aos brasileiros

O cantor e compositor Caetano Veloso, durante show em 1988 Cassio Vasconcellos/Folhapress

Guilherme Gontijo Flores

Caminhando Contra o Vento

  • Preço R$ 29,90 (120 págs.)
  • Autor Igiaba Scego. Tradução: Francesca Cricelli
  • Editora Nós

É curioso como, em certos casos, a distância cria modos muito fortes de contato. Por vezes, precisamos de figuras que retomem pontos importantes para nós mesmos, porque elas podem conviver de modo diferente com aquilo que nos é muito próximo.

O francês Jean-Michel Massa, para dar um exemplo, foi o primeiro a atentar sistematicamente para as traduções de Machado de Assis; antes dele, é possível que a proximidade com o Bruxo do Cosme Velho nos tenha impedido de olhar melhor essa faceta fundamental de sua carreira.

Com potencial similar, sai no Brasil a tradução de "Caminhando Contra o Vento", pequeno ensaio em que a escritora italiana Igiaba Scego funde narrativa afetiva e quase romanesca sobre Caetano Veloso com uma leveza crítica que escapa às armadilhas acadêmicas, enquanto cruza sua própria trajetória com a vida e a obra do brasileiro.

Nessa intervenção poética, enquanto mantém uma linha cronológica, Scego cria digressões variadas, que fazem com que o percurso de Caetano se ramifique numa rede complexa de retomadas. Como ela afirma: "Ceci n'est pas une biographie. São só palavras. Vírgulas. Pontos. São seus olhos que leem. Um punhado de canções. Anotações. Vida". De fato, a vida transborda a cada sinal gráfico.

O livro é repleto de aproximações inusitadas e preciosas, por exemplo: entre a mesa da casa dos Veloso em Santo Amaro e a vida de Scego como italiana descendente de somalis exilados; ou entre a foto de Caetano e Gil no exílio e os eritreus, sírios e etíopes, que nos últimos anos vêm fugindo da violência de seus países rumo à Europa.

Nesse momentos, vemos como Scego pensa Caetano para além de seu contexto específico e o faz surgir num mundo que ecoa vida e obra num movimento de diferenças e repetições da história.

Esse potencial de releitura e revivência é ponto forte do livro, que, proposto como introdução aos italianos, acaba por apresentar uma leitura renovada aos brasileiros. É também refinada a atenção dada ao trabalho impactante de Caetano como intérprete de canções alheias, capaz de recriá-las em nova performance.

Apesar do impressionante conhecimento de Scego, o ensaio apresenta alguns deslizes, como ao afirmar que a canção "Baby" teria sido composta para Gal Costa, quando o próprio Caetano declarou que fora feita a pedido de Maria Bethânia, que preferiu não cantá-la em "Tropicália ou Panis et Circenses", de 1968. Só assim a canção foi assumida por Gal, que então fez seu primeiro sucesso.

Scego também acaba por deixar de lado parte das difíceis contradições de Caetano no campo da cultura e da política brasileiras, talvez por não percebê-las à distância.

Mas essas falhas tornam-se secundárias nesse livro-homenagem, fusão afetiva de narrativa e crítica que celebra essa figura, que, por concentrar em si tantos polos contraditórios e uma longa invenção poética e musical, talvez seja, sem exagero, o maior nome vivo da cultura brasileira.

Guilherme Gontijo Flores é professor de língua e literatura latinas na UFPR e tradutor

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