Concerto recria música de Beethoven como ele a apresentou a seu público

Pela 1ª vez na América Latina, peças são tocadas com instrumentos iguais aos dos séculos 18/19

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São Paulo

Esqueça o “tan, tan, tããn, tããããããn” ressoante e prolongado que você se acostumou a ouvir quando toca a “5ª Sinfonia”, uma das mais conhecidas composições do alemão Ludwig van Beethoven (1770-1827).

Não era dessa forma que a abertura soava quando ele escreveu e estreou sua peça, no começo do século 19 —e é isso que o Conjunto de Música Antiga da USP quer mostrar nesta semana em São Paulo.

 

Pela primeira vez na América Latina, essa música de Beethoven será apresentada com instrumentos clássicos, no andamento e com a sonoridade que só eles podem reproduzir.

É uma apresentação que chega tarde. Há pelo menos 30 anos saíram na Europa as primeiras gravações desse repertório na chamada “abordagem historicamente informada”, que procura recuperar as práticas de interpretação a partir dos tratados de música escritos na época, da literatura e de descrições e cartas.

O atraso, porém, embute uma vantagem: só no ano passado uma revisão da partitura da “5ª Sinfonia” (que estreou em 1808) corrigiu um erro de publicações anteriores —a exclusão de um trecho da obra.

Integram o programa “Abertura Coriolano” (1807) e o “Concerto para Piano nº 3” (1803), que também passou por revisão recente.

Beethoven foi escolhido por ser o “compositor de orquestra por excelência”, diz a diretora do Conjunto, Mônica Lucas, clarinetista e professora de história da música da USP.

Era impossível, porém, tocar suas obras na abordagem histórica na América Latina, porque nunca houve um naipe completo de instrumentos de sopro da época. 

Aqui faltam oboés. Na Argentina faltam clarinetes. 

A solução veio num convênio da USP com a Escola Superior de Música Manuel de Falla e a Universidade de Córdoba, ambas argentinas, que completou a orquestra clássica.

As apresentações desta semana terão 6 instrumentistas argentinos, além de 4 do interior paulista, 2 fluminenses e músicos da Holanda, de Florianópolis, Londrina, São João del Rei e Salvador.

“Queremos reconstruir a sonoridade daquelas estreias”, diz o regente, William Coelho.

As três obras serão executadas por uma orquestra de tamanho idêntico ao da comandada por Beethoven: 42 músicos, cerca de metade da equivalente moderna.

Além dos 12 instrumentos de época, no “Concerto nº 3” será usado o fortepiano comprado pela USP em 2014, réplica do que Beethoven usava nas estreias dessas peças.

Os instrumentos clássicos têm o que William e Mônica chamam de “dicção mais clara”: emitem notas que não se sobrepõem às seguintes, o que permite andamentos mais rápidos.

Outra diferença é a afinação. Enquanto o piano atual tem oitavas divididas em 12 intervalos regulares, o fortepiano tem intervalos ligeiramente distintos. 

Esse temperamento desigual dá um caráter especial a cada tonalidade, diz Mônica. A das três peças do programa —o dó menor—, por exemplo, era considerada própria para grandes desventuras, mortes de heróis, acontecimentos sinistros ou lúgubres.

A diferença de caráter entre as tonalidades é difícil de representar nos instrumentos modernos, construídos de modo a obter a maior igualdade possível entre as notas.

Tocada numa orquestra moderna, a música de Beethoven soa “bonita demais”, “afinada demais”, dizem William e Mônica. Trechos desafinados na música antiga, porém, não são um defeito inevitável ocasionado por deficiência técnica dos instrumentos. São propositais, afirmam eles.

Um exemplo é justamente o “Concerto nº 3”, no qual o segundo movimento, quando tocado por instrumentos clássicos, resulta “péssimo para o ouvido que a gente tem hoje”, segundo Mônica. 

“Mas era intencional, para criar tensão. Num temperamento igual, fica tudo bonito. Mas o que Beethoven queria era isso bonito e aquilo ‘feio’.”

Ela rebate o argumento de que o compositor teria preferido escrever para instrumentos modernos, porque, segundo relatos de seus conhecidos, se queixava dos recursos que tinha e experimentava com avidez as novidades.

“É como imaginar que, se tivesse um sintetizador, não teria composto para orquestra. Ou, se tivesse conhecido Michael Jackson, teria feito música pop”, divertem-se o maestro e a diretora.

“A gente procura seguir muito o que está na partitura manuscrita, porque eram as condições daquela época. Era para soar assim”, diz William.

Partitura da "5ª Sinfonia" de Beethoven; compassos iniciais
Partitura da "5ª Sinfonia" de Beethoven - Ana Estela de Sousa Pinto/ Folhapress

É essa também sua linha de regência na “5ª Sinfonia”. “Veja aqui”, diz ele, mostrando a partitura (acima). “Não tem rallentando, não tem ritenuto. E Beethoven escrevia ritenuto quando queria ritenuto. Aqui, ele não queria.”

Ou seja, ouvia-se “tã, tã, tã, tan” em vez de “ “tan, tan, tããn, tããããããn” ”. 

“Não tinha essa coisa do romantismo, de deixar essa nota tomar toda a sala, como se faz hoje. Vão se criando coisas em que Beethoven não pensou.”

Outra discussão é sobre o andamento das peças. O metrônomo, instrumento que marca o ritmo, foi inventado em 1812, e Beethoven foi o primeiro a indicar marcas dele em suas partituras, em 1817 —e revisar as já compostas.

O andamento extremamente rápido de algumas peças, porém, levou estudiosos a cogitar que ele usasse um metrônomo impreciso. “Há quem diga que não dá para ter certeza do que ele queria, por já estar surdo”, relata Mônica. 

Para William, a ideia é absurda. “O metrônomo é também visual. E Beethoven compôs obras magníficas quando estava completamente surdo. Era capaz de ouvir harmonias complexas. Qual o problema de transformar um ritmo só olhando para o metrônomo?”

Há ainda críticos para quem a orquestra moderna reflete melhor o poder da música do compositor alemão.

William, que já regeu a “5ª Sinfonia” com a Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo), acha a questão deslocada. O importante, diz, é conhecer as possibilidades e impossibilidades de cada tipo de orquestra. 

Para o maestro, é preconceito achar que a interpretação histórica soa fraca ou esquisita. “Não. Esse tipo de som é bonito e é funcional.”

 

BEETHOVEN COM INSTRUMENTOS HISTÓRICOS

Conjunto de Música Antiga da USP. Regência: William Coelho. Solista: Zvi Meniker (fortepiano). Segunda (10), às 12h. Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. R. da Biblioteca, Cidade Universitária, São Paulo. Grátis. Sexta (14), às 21h. Sesc Vila Mariana. R. Pelotas, 141, São Paulo. Ingressos: de R$ 6 a R$ 20


GLOSSÁRIO


Oitava
Intervalo entre uma nota e a oitava nota seguinte ---por exemplo, entre as duas notas dó na sequência dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó


Temperamento
Esquema de divisão das oitavas usado na afinação dos instrumentos. Nos modernos, a oitava é dividida em 12 semitons idênticos. Nos instrumentos clássicos, é usado o temperamento irregular, com intervalos ligeiramente diferentes entre si


Tonalidade
É o sistema de relação e hierarquização entre as notas, indicada pelo compositor. A composição é organizada a partir de uma escala —por exemplo, o dó menor, usado nas peças apresentadas em SP, contém as notas dó, ré, mi bemol, fá, sol, lá bemol, si bemol e dó. A tonalidade confere um caráter específico à música


Rallentando, ritenuto
Rallentando é uma indicação para promover um retardamento gradual no tempo de uma música; ritenuto indica uma redução mais extrema e súbita, para efeito dramático


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