Descrição de chapéu BBC News Brasil

O desastre em Florença que pode servir de lição para preservação do patrimônio histórico do Brasil

Itália teve num grande desastre natural que alagou o centro histórico de cidade berço do Renascentismo

Lucas Ferraz
Florença | BBC News Brasil

País que ostenta o maior número (54) de patrimônios da humanidade reconhecidos pela Unesco, a Itália teve num grande desastre natural que alagou o centro histórico de Florença, cidade berço do Renascentismo, uma inflexão crucial nos procedimentos de segurança adotados na sua extensa lista de bens culturais —que vão da pré-história aos dias atuais.

 A grande enchente em Florença, em 1966, casou destruição, mas também estimulou a criação de um refinado sistema de restauro em obras de arte que se tornou referência mundial
A grande enchente em Florença, em 1966, casou destruição, mas também estimulou a criação de um refinado sistema de restauro em obras de arte que se tornou referência mundial - Biblioteca Nazionale di Firenze

O histórico italiano deixa lições, segundo especialistas do setor, para países como o Brasil, que acaba de ter o seu Museu Nacional destruído por um incêndio —mesmo que a causa de um desastre seja um fenômeno natural e a de outro a ação (ou inação) humana.

No caso da Itália, a tragédia foi provocada pela enchente - causada por fortes chuvas —do rio Arno, na Toscana, em novembro de 1966.

O aguaceiro danificou uma parte considerável do acervo histórico de Florença (o nível da água chegou a quase seis metros de altura, inundando galerias, museus, igrejas e bibliotecas) e impulsionou uma série de medidas que foram adotadas progressivamente nos anos seguintes.

O trabalho desenvolvido ali levou à formação de um refinado sistema de restauro em obras de arte que se tornou referência mundial e marcou na história um dos momentos mais bonitos de solidariedade - para a preservação do acervo e limpeza da cidade - que envolveu 74 países, inclusive o Brasil.

 incêndio no Rio de Janeiro no início deste mês. Não faz muito tempo, ela havia visitado o local destruído. "Não há dúvidas de que se trata de uma verdadeira perda para toda a humanidade", lamentou.

Para Acidini, que foi diretora do polo de museus de Florença e atualmente preside a Academia da Arte do Desenho, a tragédia no Museu Nacional só se compara às destruições do patrimônio histórico vistas em conflitos como a Segunda Guerra Mundial (1939-45) - que muito afetou a Itália —ou mesmo na atual guerra da Síria, que já destruiu mais de duas dezenas de locais declarados como patrimônio da humanidade. "Em tempos de paz, nunca vi algo semelhante como o desastre no Rio", ressaltou.

Foi criado, após a enchente em Florença, um código civil para a proteção do patrimônio histórico de todo o país e, uma década depois, o Ministério dos Bens Culturais, responsável ainda pela área de cinema, arquivos e bibliotecas
Foi criado, após a enchente em Florença, um código civil para a proteção do patrimônio histórico de todo o país e, uma década depois, o Ministério dos Bens Culturais, responsável ainda pela área de cinema, arquivos e bibliotecas - BBC

Se há algo positivo no episódio, acrescenta ela, está a revisão imediata das condições dos demais museus e instituições culturais do Brasil para que, no futuro, novos desastres dessa magnitude não se repitam.

Na Itália, a enchente em Florença resultou na criação de um código civil para a proteção do patrimônio histórico de todo o país e, uma década depois, na criação do Ministério dos Bens Culturais, responsável também pela área de cinema, arquivos e bibliotecas.

Na região da Toscana se criou ainda um plano de proteção ao centro histórico (um dos patrimônios listados pela Unesco) que envolve Corpo de Bombeiros, policiais e a população civil, treinada para agir em caso de emergência.

"Muitos moradores foram capacitados para, ao primeiro alarme, estarem aptos a salvar as obras de arte", disse Giorgio Federici, engenheiro hidráulico que coordenou os trabalhos de uma comissão formada na cidade sobre a enchente ocorrida há mais de meio século.

Além da prevenção contra incêndios e enchentes, o país também desenvolveu um plano antissísmico, já que é alvo frequente de terremotos.

No dia 4 de novembro de 1966, 80 milhões de metros cúbicos de água invadiram Florença após o rompimento de um dique do rio Arno —por aqueles dias, chuvas torrenciais atingiram toda a Itália.

Além de deixar dezenas de mortos e milhares de desabrigados, a água tomou igrejas, galerias como a dos Ofícios, um dos mais antigos e famosos museus do mundo, que reúne a maior coleção de obras do Renascimento italiano, e instituições como a Biblioteca Nacional.

Pelo menos 1.500 obras de arte sofreram danos (muitas delas se perderam para sempre), assim como milhares de livros, manuscritos, esculturas e pontes. Após a água ser drenada, o centro histórico da cidade parecia um grande pântano.

A rede de solidariedade que se formou em seguida reuniu gente do mundo inteiro que chegou a Florença para ajudar na sua reconstrução —sobretudo jovens, que passaram a ser chamados de "angeli del fango", ou anjos do barro.

As águas da enchente de 1966 tomaram igrejas, museus e a Bliblioteca Nacional de Florença
As águas da enchente de 1966 tomaram igrejas, museus e a Bliblioteca Nacional de Florença - BBC

De máquinas para drenar a água enviadas pela Holanda e Alemanha às bananas despachadas pela Somália, a Itália recebeu ajuda de pelo menos 74 países.

O Brasil, que fez parte da rede, contribuiu com doações em dinheiro do governo do Rio de Janeiro e com o envio de notáveis como o curador de arte Deoclecio Redig de Campos (que trabalhou por anos no Museu Vaticano), além da presença de jovens estudantes que estavam à época em Paris e foram se juntar ao mutirão na Toscana.

Segundo o centro que documentou os danos da enchente, cerca de mil quadros e afrescos já foram restaurados, além de milhares de livros —quase 52 anos depois, pelo menos 80 mil volumes ainda esperam para serem restaurados.

Uma das obras-primas danificadas só voltou a ser exibida ao público no final de 2016. Trata-se do quadro A última ceia, pintura de Giorgio Vasari datada de 1546 que passou à época mais de 12 horas debaixo d'água.

Uma das obras mais importantes do Renascimento italiano, a tela passou 40 anos num depósito e só foi recuperada graças ao financiamento da fundação americana Getty em parceria com a marca de roupas Prada.

Ela voltou a ser exposta no seu lugar de origem, o antigo refeitório da basílica de Santa Croce —agora com um moldura especial que faz com que ela seja alçada ao teto em caso de novo alagamento.

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