Antes que o senhor presidente da República seja eleito, gostaria de sugerir uma visita sua à Oca, no Ibirapuera, em São Paulo, cujo prédio de 5.000 metros quadrados é uma obra de arte em si, independentemente da exposição em curso.
Desde já peço desculpas por um certo didatismo do texto, já que me informam que Vossa Excelência gosta de tudo mastigadinho.
O edifício, construído em 1954, ano do 4º Centenário da cidade de São Paulo, foi o ensaio para o prédio do Senado Federal, inaugurado em 1960. Os dois têm o mesmo formato de tijela emborcada, embora o de São Paulo tenha uso mais nobre que o de Brasília, cuja função é a de abrigar senadores, nem sempre merecedores do respeito que os eleitos para a Casa Alta do Congresso deveriam inspirar.
A exposição que pode e deve ser visitada por Vossa Excelência, antes da possível posse, é a do dissidente chinês Ai Weiwei, um artista que desde criança sofreu perseguição do regime chinês --no início, por tabela. Aconteceu durante a Revolução Cultural (1966-1976), quando precisou ajudar o pai a rasgar folha por folha as preciosas edições de sua biblioteca, sobre os mais variados assuntos --entre eles, livros de arte.
Em seguida, pai e filho fizeram uma grande fogueira com as páginas desses livros, para que Ai Qing deixasse de ter sua casa invadida muitas vezes por representantes do governo, que já o haviam proibido de escrever poesias, ele que era considerado um dos melhores poetas da China. Sabe por quê, capitão? É que ele, como artista, não se preocupava em seguir diretrizes governamentais sobre arte. O regime comunista só admitia realismo socialista, aquele estilo do tipo anúncio de creme dental, que atrasou a verdadeira arte chinesa por décadas.
Minha preocupação ao sugerir com veemência a visita a essa exposição, como um bom contato com a arte e a cultura, é que os objetos foram feitos em boa parte na Bahia, utilizando artesãos locais, como a figa de mão fechada com o dedo médio ereto, que está vendendo que nem pão quente na Oca. Há, também, uma instalação feita com mais de uma tonelada de sementes de olhos de cabra, de Juazeiro do Norte, terra de Padim Cícero.
Na mesma lógica eclética da exposição, nosso presidente a ser eleito poderá ver uma foto em que Weiwei despedaça no chão uma urna da dinastia Han, de 2.000 anos. Mas, para fazer o gesto de destruição do passado, ele se preparou, aprendendo tudo sobre o objeto que iria destruir, de tal forma que pôde apresentar, nessa exposição do Ibirapuera, uma pilha de vasos Ming com motivos contemporâneos.
O terremoto da cidade de Sichuan também está representado na exposição, com 164 toneladas de vergalhões de aço, tirados dos escombros das escolas locais. Em engenharia, para medir a resistência dos materiais empregados em obras faz-se ensaios de destruição por amostragem. No caso chinês, com todas as escolas destruídas, ficou evidente que as construções eram de péssima qualidade. Em decorrência disso morreram 5.000 mil crianças, número censurado pelo governo chinês.
No terceiro andar, Vossa Excelência vai encontrar um espesso tapete de sementes de girassol, cobrindo todo o chão: na verdade, as sementes são de porcelana pintada à mão por artesãos chineses de uma vila inteira, levantando a questão da produção em massa e perda da individualidade.
Marcello Dantas é o nome do curador dessa exposição, sendo que a tarefa do curador é a de ser responsável pela concepção, montagem e supervisão de uma exposição de arte. É, em geral, um especialista em história da arte, filosofia ou estética.
O barco inflável gigante, em PVC, com passageiros maiores que o tamanho real é um libelo contra o sacrifício de milhões de refugiados de áreas em conflito, que se abrigam em qualquer tipo de embarcação para chegar a algum porto da Europa, apesar dos impensáveis riscos que correm.
Dentre os vídeos existe um que mostra a destruição, pelo regime chinês, do enorme ateliê do artista, construído em concreto, por meio de pás escavadeiras, sem prévio aviso.
Escrevi este texto, senhor presidente da República ainda a ser eleito, para que o senhor e seu grupo não caiam na tentação de proibir ou destruir qualquer tipo de obra de arte, nem tentem censurar coisas tão irrelevantes como a nudez, num contexto tão grande como o da obra do artista chinês. Ele mesmo se desvela, quando mostra em um vídeo a forma como foi moldada, sobre seu corpo, uma réplica perfeita de si mesmo.
E como na arte não se esconde nada, o problema que surge na montagem é que ele não havia raspado os pelos pubianos ao ter aplicada sobre si toda a cola da modelagem. Seu maior sacrifício em toda a operação foi livrar-se do molde sem a dor de arrancar os pelos grudados nele.
Capitão, espero que goste da visita à exposição.
Bom lembrar que o artista está sempre anos à frente em suas visualizações. Pouco importa se ele parece, ao novo governo, estar a favor ou contra o regime de ocasião. O próprio Weiwei foi condenado pelo regime chinês e ficou de 2011 a 2015 em prisão domiciliar. Não adiantou nada, e ele saiu de seu confinamento com energia redobrada, a ponto de realizar essa exposição pujante no Brasil.
A arte é perene; o governo, passageiro.
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