Mostras revestem de caráter político a obra geométrica de Rubem Valentim

Pintor que usava elementos de religiões afro-brasileiras ganha individuais na Caixa e no Masp

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

​Nomear o caráter combativo e resgatar a negritude da obra de Rubem Valentim é o que propõe uma retrospectiva do pintor e escultor aberta no sábado (6) na Caixa Cultural, em São Paulo. Objetivo parecido tem também o Museu de Arte de São Paulo (Masp), que inaugura mostra semelhante dentro de um mês —“Rubem Valentim: Construções Afro-atlânticas” abre em 13 de novembro.

​“O que o Rubem Valentim coloca é o seguinte: se não entendermos atos de violência, continuamos a perpetuar essa violência como se não fôssemos violentos. Matar a Marielle Franco e depois quebrar a placa dela, como aqueles dois fascistas fizeram, são frutos de uma sociedade que não quer reconhecer a sua própria violência", diz Marcus Lontra, curador da mostra na Caixa. "Reconhecer a violência é o primeiro passo para que possamos eliminá-la. Não vejo no Rubem uma obra de acomodação, ao contrário, vejo nele uma obra de virulência, de resistência”, completa.

As duas exposições adicionam uma camada de leitura politizada à obra de um artista, negro e baiano, durante décadas visto pela crítica sobretudo pela beleza formal de suas telas com sequências de elementos geométricos. 

Ao tomar tal atitude, o circuito da arte paulistana, tradicionalmente marcado pela presença de artistas brancos de ascendência europeia tanto nos acervos quanto nas galerias expositivas, faz uma espécie de mea-culpa, como que para reparar uma injustiça.

“Construção e Fé”, na Caixa Cultural da Sé, é uma versão com mais obras da mesma mostra que esteve em cartaz em Brasília, no ano passado. São cerca de 70 trabalhos abrangendo três décadas da produção do artista, tido como um dos mais importantes concretistas brasileiros.

Nascido em 1922 em Salvador, Valentim cursou jornalismo e aprendeu a pintar de maneira autodidata. Passou por uma fase figurativa e, no meio da década de 1950, voltou-se para seus ancestrais africanos, cultura na qual encontraria as características que norteariam suas pinceladas até o final da vida, em 1991.

Suas telas e esculturas sintetizam em formas geométricas emprestadas do abstracionismo europeu símbolos do candomblé e da umbanda: a flecha de Oxóssi, orixá da caça; a haste de seis pontas de Ossain, divindade da cura; e o machado duplo de Xangô, deus da justiça. São quadros com linhas horizontais e verticais, triângulos, círculos e quadrados combinados de diversas maneiras.

À esta geometria, adiciona elementos cristãos provenientes tanto de sua família quanto de sua criação na Bahia, a exemplo do cálice de Santo Graal. A paleta de cores é quase sempre forte: amarelos quentes, pretos muito escuros, azuis profundos. 

O resultado é uma obra de sincretismo religioso que, se por um lado foi muito celebrada em função de sua originalidade e apuro estético, por outro passa a ser enxergada pelo meio com lentes de 2018.
“A ideia do sincretismo é muito bonita, mas é fruto de um ato de violência. O sincretismo existe como uma estratégia em que os negros foram agredidos porque não podiam manifestar os seus cultos”, explica Lontra, da Caixa.

O Masp, por sua vez, levará para suas galerias um conjunto de 92 obras —80 pinturas e 12 esculturas—, de um período que vai de 1955 a 1978, ano seguinte à participação do artista na 16ª Bienal de São Paulo. Parte destas esculturas esteve na exposição na Caixa Cultural de Brasília, no ano passado.

O curador do Masp, Fernando Oliva, diz que a ideia é apresentar uma “síntese do artista total”, ou seja, o Valentim construtivo e o que frequentava terreiros quando criança. 

“Rubem Valentim: Construções Afro-atlânticas”, é parte do eixo curatorial do Masp em 2018. O museu apresenta este ano uma sequência de exposições em torno de questões levantadas pela escravidão —que traficou 5,5 milhões de africanos para o Brasil.

A simultaneidade das duas mostras não é por acaso: elas ocorrem em um momento de valorização de obras que lidam com questões raciais, movimento que vem se desenhando há alguns anos, desde que o mineiro Paulo Nazareth despontou com suas instalações e performances.

O reconhecimento de artistas negros pelas instituições —a exemplo das gravuras do brasiliense Josafá Naves, também em cartaz na Caixa Cultural de São Paulo, e da mineira Sonia Gomes, que expõe agora suas esculturas de tecido no MAC de Niterói —, se traduz em um interesse maior por parte dos colecionadores. 

Segundo a galerista Berenice Arvani, que emprestou obras de Valentim para ambas as mostras, os preços de seus quadros saltaram de R$ 10 mil, na primeira metade dos anos 2000, para mais de R$ 450 mil cobrados atualmente. 

Este é o valor base de uma tela da fase em que o pintor morou em Roma, entre 1963 e 1966, considerada uma das suas melhores.

Rubem Valentim: Construção e Fé

  • Quando até 16 de dezembro
  • Onde Caixa Cultural - Praça da Sé, 111
  • Preço Grátis
  • Classificação Livre

Rubem Valentim: Construções Afro-atlânticas

  • Quando De 14 de nov. a 10 mar. de 2019
  • Onde Masp - avenida Paulista, 1.578
  • Preço R$35 (R$ 17 meia). Grátis às terças
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.