Obra faz investigação quase arqueológica da cozinha paulista

Carlos Alberto Dória e Marcelo Corrêa Bastos se afastam de conceitos clássicos e se apoiam em referências literárias em 'A Culinária Caipira da Paulistânia'

Luiza Fecarotta
São Paulo

A cozinha paulista que “teima em desaparecer”, que não existe mais nos hábitos cotidianos, que é desprezada e tenta ser suprimida por representar o avesso do que se entende por moderno é o objeto de estudo do livro “A Culinária Caipira da Paulistânia”, a ser lançado nesta segunda (15) pela Três Estrelas, selo editorial do Grupo Folha.

Motivados pela busca de um substrato comum desse antigo modo de comer, hoje sustentado no imaginário, os autores, o sociólogo Carlos Alberto Dória e o chef de cozinha Marcelo Corrêa Bastos, rompem com a lógica da divisão política entre os estados e assinam uma obra inovadora, capaz de provocar o debate da cozinha brasileira, especialmente a paulista, que nunca foi investigada desse modo, “quase arqueológico”.

Carlos Alberto Dória no Festival Fartura de 2016, em São Paulo
Carlos Alberto Dória no Festival Fartura de 2016, em São Paulo - Raquel Cunha/Folhapress

Anunciam, ainda, uma nova metodologia para estudar a culinária, que se atenta a desenhar territórios a partir de referências literárias —como Guimarães Rosa em Minas Gerais, Euclides da Cunha no sertão da Bahia, Monteiro Lobato em São Paulo— ao mesmo tempo em que se afasta dos conceitos clássicos de miscigenação e regionalismo propostos por Luís da Câmara Cascudo e Gilberto Freyre.

Escoltados pela pesquisa profunda da historiadora Viviane Aguiar, identificam a presença constante do milho, do feijão, da abóbora, emprestados do universo alimentar dos guaranis ao qual foram incorporados o porco dos portugueses, a galinha, a salsinha.

São elementos que confirmam a expansão dos paulistas pelo Brasil e que ajudam a traçar o retrato dessa alimentação que surge baseada na itinerância de bandeirantes e tropeiros, e desenvolve-se em sítios, depois da decadência da mineração.

O chef Marcelo Corrêa Bastos, no restaurante Jiquitaia
O chef Marcelo Corrêa Bastos, no restaurante Jiquitaia - Keiny Andrade/Folhapress

A culinária que se fixa nessas unidades de agricultura de subsistência é basicamente fruto da interação de brancos e índios —“a presença negra neste espaço é quase nula”, diz Dória, coautor de “Formação da Culinária Brasileira” (Três Estrelas). 

 


Os paulistanos negam a origem de sua cozinha? Há um dualismo na sociedade brasileira, que se industrializa de um lado e mantém um ruralismo atrasado de outro. Isso é o que afasta o caipira do que foi em boa parte obra sua, o estado de São Paulo. As quitandas, o comércio de carne, a venda de mantimentos vão sendo vistos como ultrapassados e os imigrantes italianos trazem novos padrões, a tal ponto que os paulistanos olham para o interior e não se reconhecem mais.

Minas exporta a sua cozinha, a Bahia e o Pará idem. São Paulo só absorve? Exatamente. 
A nossa virtude é ser consumista, tanto de coisas do exterior como de outras regiões.

O livro faz uma espécie de crítica ao “desenraizamento dos paulistas”? Se pensarmos em cozinhas regionais, na França, na Itália, ou mesmo no Brasil, no Nordeste, no Norte, há uma identidade maior com o território. São Paulo perdeu isso.

Mas há um substrato comum dessa cozinha que se espalha com bandeirantes e tropeiros e se particulariza em algumas regiões? O milho e suas várias formas e preparações, o feijão, a abóbora. A partir desse núcleo, são agregadas algumas variantes regionais, como guariroba, pequi, pinhão.

Com a decadência das minas, os sítios passam a gestar a culinária de subsistência? É  no sítio que esses ingredientes se combinam. É um enorme território de formação e consolidação da culinária caipira. O porco é incorporado pelos portugueses, seja como carne ou produtor de banha, elemento central na conservação.

Trata-se, aliás, de uma cozinha de conservas? Uma das funções dessa cozinha é suprir a matulagem de quem desbrava terras e de conservar alimentos. Então há conservas de frutas em açúcar, de carne em banha, pela desidratação. Pobreza e simplicidade são traços dessa cozinha.

A mandioca é celebrada como a rainha do Brasil, mas São Paulo é uma civilização do milho, como sugere Sérgio Buarque de Holanda? Quando os colonizadores chegam aqui, a grande alimentação dos índios é o milho. O milho tem ciclo curto e se adapta mais à conquista territorial se comparado à mandioca, cujo ciclo longo sugere uma vida sedentária. Essas diferenças favorecem a funcionalidade do milho, que envolve um conhecimento indígena em seu aproveitamento, como a farinha.

Embora a obra tenha partido de 800 receitas, não se trata de uma coletânea tradicional. O essencial é que uma receita indique ingredientes, proporções e processos de cocção. Nós fazemos indicações para quem sabe cozinhar, com considerações culturais. E, como desenhamos um território culinário, que abrange estados como São Paulo, Minas, Goiás e Mato Grosso, nos preocupamos em identificar semelhanças e proximidades entre receitas, não diferenças, como usualmente se faz nos livros de culinária regional.

É possível acessar o gosto do passado mesmo com a perda de variedades de ingredientes? O livro também é uma denúncia dessa perda de diversidade e do empobrecimento do gosto, especialmente do século 19 para cá, quando há uma simplificação da produção. As espécies desapareceram, e o que chega à mesa hoje não tem o sabor que tinha.

A industrialização e a negação do caipira contribuem para o desaparecimento dessa cozinha? Sem dúvida. Por que o ora-pro-nóbis existe em Minas? Porque as pessoas usam, preservam. Na medida em que deixam de usar, essas coisas desaparecem. Há um distanciamento em relação aos antigos modos de comer e um empobrecimento geral.

Há um esforço de chefs na busca de elementos perdidos? Os chefs que se preocupam com a inovação de ingredientes atravessam o país como se fossem bandeirantes modernos. Mas, no fundo, partem para a Amazônia, para o cerrado, movidos pela ignorância com a própria cozinha, que é a caipira.

E como desempenhar uma função social? Eles precisam mergulhar na história, na biologia, na agricultura, na agronomia, para refazer um pouco essa cozinha. Não há uma política traçada para restaurar antigos modos de comer. 

Você diz que houve uma mineirização da cozinha caipira. Os paulistas, que tinham aversão aos caipiras e um passado de imigração, abrem mão de sua cozinha, que é apropriada por Minas. Esse estado constrói certa mitologia da cozinha caipira, e os paulistas ficam à margem disso.

A cozinha caipira “não há mais”, como diz Drummond? A cozinha caipira é uma reminiscência de alguns brasileiros, mas eu acho que ela pode viver muito bem na memória ativa. Ela não está mais no cotidiano, não é ela que provê os nutrientes da vida, mas ela provê fantasias.

Você falou em fantasia e lembrei do encantamento, sobre o qual a Nina Horta fala. Sim, sim. Eu acho que a função do intelectual, especialmente em dias tão desesperançosos, é promover o reencantamento do mundo. Não deixar a utopia, a fantasia morrer. Não é?

A Culinária Caipira da Paulistânia
Autores: Carlos Alberto Dória e Marcelo Corrêa Bastos. Editora Três Estrelas. R$ 62,90 (368 págs.). Lançamento: seg. (15), às 19h, no restaurante Jiquitaia (r. Antônio Carlos, 268)

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