Venezuelanos do El Sistema buscam refúgio em outras orquestras do Brasil e do mundo

Mais de 80% da Orquestra Simón Bolívar deixou o país com o agravamento da crise econômica no regime de Nicolás Maduro

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O maestro venezuelano Gustavo Dudamel

O maestro venezuelano Gustavo Dudamel Divulgação

São Paulo
Prestes a desligar o telefone, a violinista O. pede que não seja identificada com medo de que o governo da Venezuela, seu país natal, cause algum mal a ela. “A maioria das pessoas que mora aqui quer ir embora”, afirma. 
 
O. é uma das poucas pessoas que restaram da tradicional Orquestra Simón Bolívar, do El Sistema, o programa de ensino musical fundado em 1975 pelo economista e maestro José Antonio Abreu. Parte de um projeto de inclusão social, a orquestra atendeu mais de 350 mil jovens músicos de regiões pobres da Venezuela.
 
Agora, com a crise política e social que assola o país, essa iniciativa começou a se desfazer —os músicos talentosos formados por ela começam a se espalhar pelo mundo.
 
Não é só a música que sofre. A crise no país elevou o nível de desnutrição e mortalidade infantil no governo do ditador Nicolás Maduro e tornou bem mais precária a vida de quase todos os cidadãos. Sem falar na perseguição política a opositores promovida pelo regime chavista.

De acordo com sete músicos do El Sistema ouvidos pela reportagem, 100 dos 120 nomes que integravam a orquestra em seu auge já teriam deixado o país, fugindo das condições difíceis que os venezuelanos vêm enfrentando nos últimos anos. 

A alta qualidade do ensino musical no projeto, contudo, possibilitou a músicos venezuelanos que buscaram refúgio em países ao redor do mundo serem bem recebidos em outros conjuntos musicais. 
 
Após a emigração de boa parte dos seus membros, a orquestra se viu obrigada a abrir audições na busca de novos nomes. Porém, segundo O., os novatos não têm o alto nível musical dos veteranos. 

O. sonha em vir ao Brasil e disse que ainda não deixou a Venezuela porque tenta sair de seu país de forma legal. A violinista não sabe quando e se seu sonho será possível —ela relata que muitos cidadãos são impedidos de sair mesmo quando já estão na fila de embarque nos aeroportos. 

“Quando as pessoas tentam renovar seus passaportes, os documentos nunca voltam”, diz. Para ela, o maior problema do país é não ter a quem recorrer no caso de doenças, já que muitos médicos saíram do país. Questionada sobre como tem vivido, ela diz que está sobrevivendo. 

A cautela pela preservação da identidade de O. não é exagero. Gustavo Dudamel, grande nome da música clássica e regente da Simón Bolívar, fez críticas à ditadura de Nicolás Maduro no jornal espanhol El País.
No artigo, publicado em julho do ano passado, ele pedia a suspensão da nova Constituinte proposta pelo ditador. 

Na época, outros venezuelanos também criticaram a medida, que foi interpretada como um autogolpe de Estado que estaria dissolvendo poderes contrários ao Executivo, como a Assembleia Nacional e a Procuradoria-Geral da República.

“Penso em todas as vítimas mortas nesses meses com grande angústia e dor; não podem imaginar o quanto meu país me dói”, escreveu ele. 

Depois das declarações de Dudamel, músicos relatam que a Simón Bolívar deixou de receber verbas repassadas pelo governo. A falta desses recursos impossibilitou que a orquestra realizasse atividades extras para aquele ano.

“Não vejo isso como coincidência”, diz o violinista venezuelano Jorge Velásquez, 26, que vive em Manaus há pouco mais de um mês e ingressou na Amazonas Filarmônica. 

Procurada pela reportagem, a assessoria de Dudamel informou que, devido a uma agenda cheia de apresentações, ele não teria tempo de conceder entrevistas.

Desde as declarações, o maestro, que hoje mora em Los Angeles, não teria voltado ao seu país com medo de retaliações do regime de Maduro. 

Velásquez lamenta que a declaração de Dudamel sobre a política venezuelana tenha feito a orquestra deixar de receber recursos do governo. O músico afirma também que não há mais liberdade de se fazer nada na Venezuela. “Foi instaurado um terror de Estado.” 

Filho de músicos, ele decidiu vir com a família ao Brasil e disse que, apesar de não ser religioso, recebeu ajuda de uma igreja local. “A comida é muito mais cara. Além disso, se tenho instrumento, não tenho como tratá-lo. Se você tem um carro, não tem como mantê-lo.” 


Assim como Velásquez, outros dois músicos venezuelanos entraram para a orquestra amazonense. Estes, porém, estão em fase de estudos e aperfeiçoamento técnico. 

O maestro Marcelo de Jesus, responsável pela filarmônica de Manaus, diz que o nível musical dos venezuelanos, em geral, é muito bom.

“Podemos dizer tudo de ruim sobre a Venezuela, menos sobre o corpo de músicos que foi formado por ali”, disse. 

O maestro compara a situação financeira dos músicos refugiados no Brasil. Para ele, Velásquez teria uma condição pouco mais favorável do que a dos demais que chegaram à região Norte do país. “Ele tem, por exemplo, celular e roupas de marca, os outros dois que chegaram têm notória necessidade de bolsas de estudo.” 

Também violinista do El Sistema, Ana López estuda há um mês em Genebra. “Na Venezuela, tínhamos uma divisão entre classes, como ricos e pobres”, ela lembra. “Hoje, todos são pobres.” 

Nas Américas, países como Colômbia e Estados Unidos, em especial a região da Flórida, foram os destinos mais procurados pelos músicos que deixaram a Venezuela. 

Em Miami, por exemplo, há mais de 20 músicos da Orquestra Simón Bolívar trabalhando em diferentes instituições. 

Gregory Carreño, que tocava no conjunto venezuelano desde a adolescência, decidiu trocar o seu país pelo balneário americano há um ano e meio, quando, de acordo com ele, “nem água havia mais”.

O músico de 36 anos conta que ele e outros venezuelanos costumam se encontrar para tocar juntos em Miami. Ele já tinha permissão para morar nos Estados Unidos e conseguiu uma bolsa de estudos na Universidade da Flórida. 

Segundo ele, um salário na orquestra venezuelana poderia chegar antes a US$ 2.400 —cerca de R$ 8.880. 
Após a crise, e com uma inflação que pode chegar a 1.000.000% neste ano, um músico em Caracas não recebe acima de US$ 20 por mês, ou seja, nem R$ 75. O valor não pagaria as cordas de um violino, que precisa de reparo mensal.

Insatisfeito com o governo venezuelano, ele arrisca uma comparação de seu país com a situação do Brasil. “Por aí é que é bom, os políticos corruptos vão para a prisão”, afirma o músico. 
 

 

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