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'Maior que o Mundo' é ótimo romance etnográfico do centro de São Paulo, em versão gonzo

Novo romance de Reinaldo Moraes articula engenhosamente sequência complexa de 3 partes

O escritor Reinaldo Moraes - Leo Martins/Folhapress
Alcir Pécora

Maior que o Mundo: Volume 1

  • Preço R$ 74,90 (456 págs.)
  • Autor Reinaldo Moraes
  • Editora Companhia das Letras

Cássio Adalberto Castanho, vulgo Kabeto, o narrador-personagem de "Maior que o Mundo", novo romance de Reinaldo Moraes, é um escritor paulistano que teve um grande sucesso literário no passado, e que, aos 53 anos, sofre um longo bloqueio criativo que atribui à falta de uma primeira frase genial que lhe daria uma espécie de passe livre para um novo grande romance.

Por ora, enquanto amarga o longo intervalo entre o êxito antigo e a desejada primeira frase mágica, Kabeto trabalha numa editora de revistas customizadas em regime quinzenal: 15 dias dando duro e 15 dias à base de cerveja e steinhäger no seu bar favorito, o Farta Brutos, pontuados com maconha e sexo eventual com a amiga Mina ou outra garota que logre levar à quitinete onde mora, solitário. 

De resto, continua a sua "quest" pela frase encoberta, enquanto na avenida Paulista eclodem as manifestações de Junho de 2013, que não chegam a interessá-lo.

Variando entre a primeira e a terceira pessoas narrativas, por meio das quais Kabeto tagarela da tarde de sexta-feira à de domingo, ao sabor de ideias e piadas de ocasião, "Maior que o Mundo" ganha o aspecto predominante de um chorrilho interminável de humor obsceno. 

Mas é possível distinguir, a contrapelo do fluxo boquirroto, uma sequência complexa de três partes, articuladas engenhosamente entre si.

A primeira delas mostra Kabeto registrando num velho gravador as impressões que lhe vêm à cabeça no seu trajeto a pé, desde a rua Teodoro Sampaio até o bar, nas imediações da praça Roosevelt. Na descida da Augusta, Kabeto decide incrementar a sua estratégia de gravação inserindo-a numa performance destrambelhada. 

Irrompe então numa academia de ginástica e num cabeleireiro unissex, enunciando em voz alta uma teoria improvisada a respeito de futuras clonagens de bebês, na qual aventa toda sorte de clichê machista e feminista.

A segunda parte, já sem o gravador ligado, é um relato de bebedeiras, com início no bar, onde o amigo Park o desafia a quebrar o bloqueio, escrevendo ao léu dez páginas por dia, durante 15 dias. 

Após a chegada de Mina, os três vão a um inferninho onde se apresenta a banda de que Park é letrista. Por fim, acompanhados de uma jovem fã do seu primeiro livro, acabam na quitinete de Kabeto, também na região da Roosevelt, animados para uma orgia cujo desfecho sai às avessas do esperado.

A terceira parte é a mais variada e inclui, em sequência: Kabeto sofrendo de priapismo, em visita à mãe viúva no Belenzinho, via avenida Celso Garcia; um retorno ao bar, onde tem rápido entrosamento sexual com um casal desconhecido; uma passagem confusa pela área perigosa do Glicério, de onde tenta retornar à casa. 

Por fim, numa ladeira, já perto da Brigadeiro com a Treze de Maio, Kabeto encontra, jogado numa caçamba, um caderno preenchido à mão. Abrindo-o, acredita encontrar não apenas o milagre da primeira frase, como um romance inteiro escrito em português primário, mas cheio de estilo.

Cada uma das três partes do romance responde a uma expectativa de superação do bloqueio criativo de Kabeto: na primeira, espera que advenha da experiência com o espaço físico e social da cidade; na segunda, associa-a à experiência pessoal excitada pela velha fórmula de sexo, drogas e rock'n'roll. Já na terceira, vem na forma do relato de alguém desconhecido.

A rigor, o gesto de roubar o romance alheio fornece um tipo de resposta que enterra de vez as suas pretensões como autor, ainda que não as de ter sucesso. 

Mais que isso, faz com que reencontre junto à primeira frase não a sua grande criação, mas aproximadamente o mesmo trabalho medíocre dos últimos 20 anos como redator ou copidesque.

Mas essa é somente uma hipótese para uma história ainda em andamento, que pode alterar o seu rumo. Há algo, contudo, que já não pode ser alterado: "Maior que o Mundo" é um ótimo romance etnográfico do centro de São Paulo, em versão gonzo.

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