Descrição de chapéu

Ilustrada dos anos 1980 tinha olhar afetuoso com nomes da formação do Brasil

Brigava-se por liberdade e contra a ideia de arte engajada de parte da esquerda comunista

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O apresentador Chacrinha, em local e data desconhecidos
O apresentador Chacrinha, em local e data desconhecidos - Acervo UH/Folhapress

Três cenas capazes (assim acredito) de sintetizar a Ilustrada na década de 1980:

  1. Chacrinha entra na Redação da Folha gritando meu nome. Eu gostava daquele cara, e ele gostava de mim. Daí a intimidade de seus gritos. O ano é 1984, quando Tancredo Neves decide enfrentar Paulo Maluf no Colégio Eleitoral. Havia boatos de que Chacrinha apoiava Maluf. Sentamos para fazer uma entrevista. Minha primeira pergunta:

  • Chacrinha, você está louco?

Ele negou, claro. Nada de apoiar Paulo Maluf. Descemos até a Barão de Limeira para fazer sua foto. Paro um carro, para montar a cena. É uma Kombi e, como sempre fui sortudo, em seu interior avisto Luiz Gonzaga. Imagine, Luiz Gonzaga. Ele desce e abraça Chacrinha. A cena vai para a capa do jornal no dia seguinte.

O cantor Raul Seixas
O cantor Raul Seixas - Rui Mendes

2) Em uma manhã de sábado, lá pelas seis da manhã, sou acordado por gritos (de novo) vindos do portão. Eu morava numa casa de fundos, no Sumaré. Abro a janela, obviamente sonado, e vejo Raul Seixas e um de seus "roadies". O ano devia ser 1983.

  • Abre aí que quero revelar uma coisa para você.

Ele não está em boas condições de navegabilidade. Vinha virado. Vamos para a cozinha, faço um café. Eu tinha duas cadelinhas - Linda e Dirce Batista, que logo pulam sobre ele.

  • Preciso contar a você que fui preso e torturado.

  • Como assim?

A conversa dele é confusa. Ele não estava positivo e operante. E eu, com sono. Raul levanta a camisa, mostra algumas cicatrizes.

  • O que foi isso, cara?

  • Eu tô dizendo a você que fui preso e torturado...

Pura viagem.

O escritor Luís da Câmara Cascudo, romancista, folclorista, antropólogo e historiador potiguar
O escritor Luís da Câmara Cascudo, romancista, folclorista, antropólogo e historiador potiguar - Folhapress

3) Entro num casarão no centro velho de Natal, Rio Grande do Norte. Já na soleira, escuto uma voz carregada e meio gritada:

  • Eu estava esperando o senhor…

É Luís da Câmara Cascudo, de pijama e quase totalmente surdo, sentado numa cadeira de balanço.

  • O senhor encontrou com pessoas muito interessantes - continua ele.

O ano é 1982. Eu refazia a trilha percorrida por Mário de Andrade em 1929, quando foi recepcionado por Câmara Cascudo e apresentado ao universo musical nordestino. O trajeto se transformara no livro "O Turista Aprendiz" --eu repisava seus passos décadas depois, cidade por cidade, e buscava me encontrar com quem o escritor estivera durante a viagem. Minhas crônicas diárias saíam na Ilustrada. Câmara Cascudo as acompanhava:

  • Eu sabia que o senhor viria me visitar - me disse.

De meu bunker na Ilustrada, como repórter ou colunista, na década de 1980, vivenciei muitas histórias como as ocorridas com Raul, Chacrinha ou Câmara Cascudo. Milhares delas, envolvendo de Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda a Mãe Menininha do Gantois, Dyonélio Machado, Pedro Nava ou Cartola. Havia uma efervescência, uma inquietação. Minha geração cresceu brigando nas ruas contra os generais no poder. Brigava-se por liberdade e contra a ideia de arte engajada acenada por parte da esquerda comunista.

Daí o olhar afetuoso com nomes catárticos da formação brasileira e formal indisposição com a visão utilitária (política/instrumental) da cultura. Nada de vícios como busca "pela identidade brasileira", valorização cega à tal "cultura de raiz" ou bajulação mecânica aos companheiros de oposição. Queríamos o mundo e, portanto, poetas, músicos, escritores e artistas visuais sintonizados com a urbanidade --e, sabe-se, dentro do urbano habita o arcaico e o moderno, mas sempre com horror ao caipira.

Quando entrei, a Folha era o segundo jornal de São Paulo. Ao sair, sete anos depois, era o maior do país. Meu primeiro texto foi escrito sob o último governo militar e o derradeiro, nesta fase, sob a presidência de José Sarney.

De todo o período, a campanha pelas Diretas, e sua derrota no Congresso, foi a parte reveladora de que no Brasil, ao final do túnel, não há luz - mas sim a cruz. Com a morte de Tancredo, caímos em Sarney, uma papa-hóstia rematado, que logo buscou impedir a exibição de "Eu Vos Saúdo, Maria", de Jean-Luc Godard, acusado de trazer uma visão nada pia sobre a mãe de Jesus. Sarney proibiu e a Ilustrada praticou desobediência civil ao exibir o filme no auditório da Folha. Seu ato tornava o Estado um braço da religião. Algum paralelo com os dias atuais?

Contei toda essa história em meu filme. Não estávamos ali para fazer amigos. Em um dos depoimentos, Fernando Gabeira revela que Sarney proibiu o filme a pedido… da mãe dele!

Miguel De Almeida é editor e diretor. Dirigiu o filme "Não Estávamos Ali para Fazer Amigos", com Luis Cabral, sobre seus anos na Ilustrada e o final da ditadura militar

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