Nuvens e trovões inspiram novas obras da dupla Detanico e Lain

Artistas com exposição em SP constroem novos alfabetos para retratar um planeta mergulhado no caos

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São Paulo

O rastro de néon que corta a fachada do prédio do chão ao teto lembra os raios das tempestades de verão que afogam as ruas e avenidas de São Paulo todos os fins de tarde nesta época do ano.

Mas o desenho faiscante que anuncia a mostra da dupla Detanico e Lain sobre a pele de concreto do Espaço Cultural Porto Seguro alude à linha internacional de mudança de data, o traçado imaginário criado por geógrafos para determinar o ponto no meio do oceano Pacífico onde o hoje se transforma em amanhã. 

Toda a obra desses artistas e designers, de um minimalismo tão sedutor quanto obsessivo, retrata o mundo e seus fenômenos naturais a partir de códigos e estruturas invisíveis, uma tentativa de impor ordem a tudo que nos engolfa como caos sem se ater às aparências mais superficiais.

Mesmo as linhas e contornos mais banais ressurgem nas esculturas, vídeos e instalações dessa dupla brasileira radicada em Paris dissociados do que poderiam evocar de imediato, num jogo de subversão linguística em que significado se descola da forma para gerar —belos— ruídos.

Uma escultura na exposição agora no centro cultural dos Campos Elíseos, por exemplo, lembra à primeira vista a materialização em cobre de um trovão que serpenteia pela galeria, mas representa, na verdade, a rota entre os bairros paulistanos da Luz e do Paraíso, dois nomes, aliás, com uma pegada atmosférica.

Seguindo a topografia da cidade, o lado do distrito na região central fica mais perto do chão, enquanto a outra ponta é mais elevada, tal qual o planalto da avenida Paulista.

Essa ideia de deslocamento, tanto no espaço quanto no tempo, atravessa toda a exposição. E o flanar por São Paulo reaparece no andar de cima, em que versos de Oswald de Andrade sobre as nuvens nos céus entre o Brás e a Luz, na maior metrópole do país, flutuam desfocados numa projeção, ganhando eles também a aparência de massas de ar sopradas pela ventania.

Não é o momento mais brilhante da mostra. Outra obra menos potente encarna a mesma noção de deriva. É uma animação em que o vulto de um bonequinho estampado com as palavras de “Ulysses”, de Joyce, aparece caminhando contra fundo preto.

O trabalho repisa uma estratégia já usada num vídeo de mais de uma década atrás em que os artistas perguntavam, usando as páginas de “As Ondas”, de Virginia Woolf, o que aconteceria se tudo de repente parasse de se mexer.

Movimento e paralisia, no caso, são dois pontos do espectro de ideias que orientam os trabalhos da dupla. Na mais monumental das peças da mostra atual, o que parece ser uma cachoeira de luz é uma sucessão de faixas coloridas em que cada listra é um pixel da fotografia estática de uma queda d’água esticado de ponta a ponta da tela —cada fragmento luminoso que compõe a imagem original é dilatado para dar vida ao que seria uma figura inerte.

O mesmo acontece numa instalação toda branca em que projeções de luzes nas cores primárias —amarelo, azul e vermelho— desenham sombras ao redor dos corpos dos bailarinos que vão dançar dentro dos contornos da peça ao longo da mostra.

“Tem uma linguagem por trás, uma codificação”, diz Angela Detanico, metade da dupla. “É uma tentativa de entender o mundo natural através do código, o mundo recriado.”

Nesses momentos, Detanico e Lain revelam o lado mais ambicioso de sua obra. No subsolo do centro cultural, aliás, parece estar a raiz de tudo. Lá os artistas criam um alfabeto associando cada letra ao recorte de um fuso horário sobre o mapa terrestre, eco do néon na fachada, para soletrar “alguma coisa está fora da ordem”. Sobre fundo branco, surge um mapa todo embaralhado, o retrato de um planeta caótico.

Questões políticas, no caso, não estão ausentes, mesmo que às vezes sob o verniz minimalista que esses artistas adotaram como linguagem plástica desde os primórdios.

Em tempos de ruralistas com poder de fogo no novo governo, um trabalho antigo da dupla revisto agora não poderia ser mais atual. “White Noise” é uma animação em que as centenas de tons de verde da Amazônia vista numa imagem de satélite vão sendo apagados um a um, fazendo a floresta desaparecer ao som de um televisor há muito tempo fora do ar —palavras e pixels ao vento.

Detanico e Lain

  • Quando Ter. a sáb.: 10h às 19h. Dom.: 10h às 17h. Até 7/4
  • Onde Espaço Cultural Porto Seguro - al. Br. de Piracicaba, 610, tel. (11) 3149-5959.
  • Preço Grátis
  • Classificação Livre
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